Pesca no fundo de ti mesmo o peixe mais luzente. Raspa-lhe as escamas com cuidado: ainda sangram.
Põe-lhe uns grãos do sal que trouxeste das viagens e umas gotas de todo o vinagre que tiveste de beber na vida
Assa-o depois nas brasas que restem em meio a tanta cinza
Serve-os aos teus convivas, mas com pão e vinho do trigo que não segaste, da uva que não colheste
mas que de alguma forma foram pagos em tempo ainda hábil
pelo teu muito suor e por um pouco do teu sangue Não te desculpes da modéstia da comida
Ofereceste o que tinhas de melhor
Podes agora dizer boa-noite, fechar a porta, apagar a luz
e ir dormir profundamente.
Estamos quites tu e eu, teu mais hipócrita leitor
[ prosas seguidas de odes mínimas, 1992 ]
. . . . . . . . . . . . . .
poesia que encerra a primeira parte do livro "prosas seguidas de odes mínimas", 1992.
são duas as partes, a saber: "prosas" com vinte textos e "odes mínimas", 13 poemas.
esta "ceia" evoca uma ideia de finitude. tem marca bíblica sim, do novo testamento. o catolicismo aparece em outros poemas, como "ao shopping center" e "a um recém-nascido", por exemplo. aqui, numa paráfrase da refeição clássica de cristo, o eu lírico (um leitor bíblico) se dirige a jesus: pede a ele que use peixe na ceia. uma atividade trivial que humaniza um tanto a figura divina. sabe-se que, no original do novo testamento, não havia peixe. é uma interferência do poeta. a presença da morte, no eufemismo "dormir profundamente" também traz o filho de deus para mais perto.
"dormir profundamente" lembra manuel bandeira e seu "profundamente".
no divertido "guia do turista brasileiro" (ed conteúdo), lúcio rodrigues e bebel enge alertam quem vai à fontana de trevi, em roma, e se entusiasma com o arremesso de moedinhas : "quem joga duas realiza um desejo qualquer (e quem joga três ou mais fica sem trocado para o ônibus)"
eu não sei quantas moedinhas você já perdeu, na vida, quer seja na fontana de trevi ou no riacho doce que corta sua cidade, não importa. jogar moedas pra cima ainda é tradição segura para tomada de decisões, por aqui, como numa aposta ou no começo do futebol. agora jogá-las pra perdê-las no fundo de uma fonte, já me parece bobagem, mas brasileiro é supersticioso até para escolher lugar na mesa pra almoçar, que remédio... será que alguém joga outra coisa, nas fontes, no lugar de moedas?
tinha aulas duplas, literatura, e a ferramenta mais usada para o trabalho era a garganta. giz e livro didático estavam valendo também. neste ano, fui cicerone de filosofia. isso: também dei aula, baseado no belíssimo livro de marilena chauí, volume único, cujo capítulo inicial era sobre filme "matrix". demais de bom também.
esta sala, registrada na assinatura do checão, era o 2-1mA1: "2" era ensino médio; "1" era primeira série; "m" para período da manhã; "a" para currículo em português e "1" o número da sala mesmo. e de onde veio essa sanha pelo milhão? durante as aulas, era comum eu oferecer um milhão de dólares para quem respondesse xis pergunta do livro ou que eu inventasse como desafio. puro jargão bobo.
eis que fim do ano, recebo um mimo. baita mimo. puta presente!
não consigo achar o cheque aqui, juro, mas, na época, fiz fotos. praticamente todo mundo rabiscou nele, ficou parecendo que tava sem fundo...
pessoas, fiz este texto em 2008, achei que podia colocar aqui, então vai.
2008. século 21. homenagens estão sendo feitas a três escritores importantes, de
nossa língua: pessoa (1888-1935), guimarães rosa (1908-67) e machado de assis
(1839-1908). ano de 2008 é data redonda para se relembrar gigantes da
literatura. relembrar, reler, mas não colocá-los em disputa, como fez a folha de s paulo, neste domingo, 22, com um caderno em que opinaram umas dezenas de supostos
críticos, alguns até querendo fugir do páreo e conclamando euclides da cunha
(era melhor então não ter aceitado convite do jornal). nem vou dizer quem
venceu a enquete, seria dar corda à falta de pauta do jornalão.
gente, vale a pena comparar rosa e machado? paulinho da viola e noel? mário faustino e joão cabral? carolina de jesus e conceição evaristo? zico e sócrates? mano brown e emicida? porsche e ferrari? feijoada e caipirinha?...
numa pesquisa publicada em maio de 2008, a mesma folha de s paulo
fez crer que o escritor preferido do grande público era monteiro lobato,
seguido por paulo coelho e jorge amado. três escritores diferentes demonstram
que o leitor brasileiro lê de tudo, menos os livros do sarney, mas isso já é
outra estante.
gonçalves dias fez um sabiá voar pelos versos do hino nacional, assim
como em "sabiá", naquele festival internacional da canção, em 1968. o poema do maranhense dias é publicado em 1843, trata de sentimento nacionalista,
a questão do exílio, a saudade... o brasil de 1968 era de um tempo terrível. chico e tom compuseram e cantaram "sabiá", tristíssima, um
contra-hino, merece lembrança sempre. eles cantaram mesmo debaixo de vaia, com aquelas burocráticas cynara e cybele.
tom e chico, pra mim, equivalem a esta dupla da foto, gilmour e bush. sério. acho isso mesmo... olhem, já no final dos anos 1970, só a tevê cultura, aqui por são paulo, passava
"clips" musicais. era o tv2 pop show. o que mais me
chamou atenção, pra sempre, foram duas imagens: o police, em
"every breathe you take", e a também inglesa kate bush, uma
descoberta de david gilmour. agora, os três temperamentais do "police" até
que se reuniram e passaram pelo rio de janeiro, em 2007, mas kate, já não sei mais por onde canta, se é que.
leio em camus que ser árvore ou galinha é algo mais lógico pois, nesses
casos, seríamos o próprio mundo, tal como a árvore, galinha ou um
riacho besta, perto da rodoviária. próximo disto, somos um estorvo. olhem, não
somos o mundo, fazemos parte dele. devia ser uma tragédia essa constatação, mas o humano faz questão de descolar-se desta equação e querer parecer mais do que o óbvio... daí, por que deveríamos manter a própria vida, se
ela, em si, parece esquisita, num mundo de aves, borboletas ou pedras? não há
nada que se pareça a um humano, nem mesmo saguis, do parque aqui ao lado. camus
é um alberto caeiro sem ressaca. o livro, alguns conhecem, "o mito de sísifo", um ensaio sobre o absurdo. coloco aqui um nervo exposto porque
esta é a razão de minha existência. certeza. ouça: "(...) toda a ciência
desta terra não me dará nada que possa certificar-me de que este mundo é
meu".
no mesmo capítulo, o existencialista e passional camus vai dizer que, com um
pouco de inteligência, sabe-se que o mundo é um absurdo. ou seja, abre
aspas : "o absurdo é uma paixão, a mais lancinante de todas. mas o
problema está em saber se podemos viver com nossas paixões, se podemos aceitar
sua lei profunda, que é a de queimar o coração que elas ao mesmo tempo
exalam".
o livro de camus, citado na primeira linha, é "o mito de sísifo".
há dois filmes marcantes, na linha da necessidade de superação,
quer seja ante a máquina ou diante de opressores de carne e osso. um é
"tempos modernos" (chaplin), 1936. outro, é "sindicato de
ladrões" (on the waterfront), 1954, com o impagável marlon brando em seu
melhor papel. a tradução, em português, ficou uma bomba, mas reina mesmo por
aqui mania de destruir os títulos originais.
brando faz terry maloy, irmão de um alto escalão na máfia portuária, mas que,
desde o início da narrativa, se mostra sensível. câmera em movimento, apelo à
trilha sonora e belíssimo figurino, "sindicato..." tem a seu favor,
não só a boa mão do diretor elia kazan, mas a denúncia da época do macartismo. parte do filme se passa no alto de um prédio, local de criação de
pombos-correio, viveiro pertencente ao operário morto no início. simbólico o
momento em que, após denunciar seus opressores (ex-amigos da máfia
sindical), maloy (brando) volta ao prédio e vê os pombos que cuidara com
carinho esfacelados pelo viveiro. maloy cuidava deles e, pelo que se nota,
parecia querer compensar sua participação no assassinato de seu dono. no
meio da história, maloy comentara : "vidão levam esses pombos,
heim?... comer, dormir..." mas os pombos, presos, estavam condenados,
assim como ele, que era lutador de boxe e teve de perder lutas para que seu
irmão e outros gângsters ganhassem apostas.
imperdível e aula de interpretação, tanto de brando como do padre que, literalmente, se converte à causa da justiça social.
um dos pilares da desmotivação de professores e professoras, por aqui, é a percepção de que se está aprisionado em um sistema "fordista" de trabalho em sala, ou seja, a divisão sumária do processo de ensino em categorias engessadas de aulas, como "matemática", "gramática", "geografia" etc... ou seja, para cada educador, só resta a tarefa de reproduzir o material didático sem poder se voltar também a temas atuais (racismo, política, preservação da natureza, homofobia, interrupção de gravidez etc) -- mesmo que relacionados à matéria -- sob pena de atraso no conteúdo. é triste.
sobram poucas opções:
1. reconsiderar o número de aulas por matéria (melhora até planejamento)
2. rever o material didático
3. união com outras áreas para lidar com atualidades
4. chorar
olhem, no limite, também é possível propor tarefas extraclasse aos estudantes envolvendo aqueles temas citados que geralmente ficam de fora da sala por conta desse aprisionamento de agenda e conteúdo. na verdade, há também um conservasdorismo em muitas cabeças diretivas que, deliberadamente, excluem esses conteúdos (cidadania etc) para agradar famílias muito conservadoras.
para isso, necessário é uma sintonia afinadíssima com a coordenação pedagógica.
romance da fase final da vida literária de eça de queiroz (1845-1900), "a ilustre casa de ramires" propõe uma espécie de paráfrase -- com algum humor -- para a trajetória política e econômica de portugal, desde a idade média, até o século 19.
personagem central, gonçalo mendes ramires, é o último fidalgo descendente de uma geração de ramires que sempre estiveram próximos da nobreza lusitana. ao final, o próprio joão gouveia, personagem, afirma que gonçalo é a representação de portugal.
por que injustiçado? porque leitores e leitoras do século 21 têm pressa. livros do século 19 -- em prosa -- não se encaixariam nessa ansiedade das gentes do tal século.
há muitas descrições ? sim. isso torna a narrativa lenta ? sim!
e o que fazer ? ler com calma. agora, se ficar insuportável, basta deixar de lado e procurar outra horta. nçao tem jeito. se quiser, pode ver o vídeo que fiz sobre o livro, logo aqui baixo.
olhem, é cultural da época, é do estilo do fim do século e início do séc 20, a narrativa lenta. está em dostoyevski, está em aluísio azevedo, raul pompeia, euclides da cunha, julia lopes... porque naquele tempo, predominava o determinismo, aquela tendência filosófica que acreditava ser o homem um escravo dos instintos e fruto do meio em que vivia. logo, fazia sentido o descritivismo de ambiente e de pessoas, o figurino, tudo, para poder justificar as ações dos personagens.
em 2009, a amiga julia ciasca estava na alemanha. de lá, ela me falaou do poetry slam, evento
literário que então acontece uma sexta feira por mês, desde 1997. ocorre em bares e
clubes, dentre outros espaços. a coisa toda, na alemanha, se chama statz nach vorn, algo como
"frase adiante". existe classificação, júri e prêmios.
fico pensando em incluir poesia nas próximas olimpíadas, já que pela grécia essa atividade artística -- o versejar -- era sempre exaltada. são três minutos que o ser humano tem para transmitir seu texto. não pode música. nem figurino específico. eu ganharia
fácil do gabriel, o pensador, certeza. pois então fica uma dica excelente, nos
mundos da poesia orgânica e ao vivo... se você já ouviu falar em
"sarau", pode atualizar.
[ dante e gérion -- ilustração: carlos h carneiro -- via i.a. ]
aqui no sudeste faz frio, venta, multiplicam-se galhos e folhas pela rua. roteiro que lembra um livro lá de florença, itália. é junho. no caminho, inferno a dentro, o poeta dante sente arrepios de pavor diante de
despenhadeiros, rios de fogo, poços fumegantes, fora a chance de ser morto por
um centauro imenso. é "a divina comédia", lá do século 14.
não há centauros, lá fora, mas o barulho do vento pela
janela incomoda. há notícia de pessoas sem casa ou sem teto. bueiros entupidos, árvore sobre carros e carros boiando em alagamentos. no rádio toca "meu santo tá
cansado" (o rappa). qual saída? para dante, poeta virgílio o aconselha abraçar-se a gérion, um monstro, meio gente, meio
réptil, e assim poder passar de uma parte a outra, na busca de sair do inferno. ou seja, abraçar-se ao terrivelmente mau paa ter um pouco de paz...nesse caso, é literatura que fala?
dizem que terapia é exercício para cérebro, mas nos últimos tempos tem
sido mais que isso. pra começar, não caio na
armadilha do "corpo e alma", como se uma coisa existisse por si só,
separada dessa outra (anima) sem forma nem definição. fim da idade
média. o humano, desde aristóteles, é animal racional e, aí, já entramos
noutro problema com palavras. por que só ele o racional? uma
coruja elabora seu trajeto até o ninho, depois até a presa, prepara seu vôo,
ataca, enfim, está usando algum tipo de lógica, seu insitinto, digamos,
racional. qualquer bicho articulado (com exceção do macunaíma) elabora, pensa e
age de acordo com seu meio também, mesmo que seja para mudá-lo, como os
castores e os humanos. pensar não dói.
olhem, tanto lou marinoff quanto marc sautet defendem o
bem-estar do homem pela fiolosofia. se ainda não conhece, deveria ler
"mais paltão, menos prozac", do primeiro, e "um café para sócrates", do segundo.