desengano - narcisa amália
DESENGANO _narcisa amália_
Quando
resvala a tarde na alfombra do poente
E o manto
do crepúsculo se estende molemente,
Na hora dos mistérios, dos gozos divinais
Despedaçam-me
o peito martírios infernais
E sinto que, seguindo uma ilusão perdida
Me
arqueja, treme e expira a lâmpada da vida
Feriu-me
os olhos tímidos o brilho da esperança
A luz do
amor crestou-me o riso da criança:
E quando
procurei - sedenta - uma ventura,
Aberta
via a fauce voraz da sepultura!...
Dilacerou-me
o seio, matou-me a crença bela,
O tufão
mirrador de hórrida procela!
Então
pálida e triste, alcei a fronte altiva
Onde se
estampa a dor tenaz que me cativa:;
Sorvi na
taça amarga o fel do sofrimento.
E a voz
queixosa ergui num último lamento:
Era o
cantar do cisne, o brado da agonia...
E a multidão
passou soberba, muda, frial
Desprezo
as pompas loucas, desprezo os esplendores,
Trilhar
quero um caminho orlado só de dores:
E além,
nas solidões, à sombra dos palmares,
Ao
derivar da linfa por entre os nenúfares,
Quero
ver palpitar, como em meu crânio a ideia.
O inseto
friorento na lânguida ninfeia!
Ao
despertar festivo da alegre natureza,
Quero
colher as clícias que brincam na devesa:
Sentir
os raios ígneos da luz do sol de maio
Reanimar-me
a vida que foge n'um desmaio;
Pousar
um longo beijo nas rubras maravilhas
E
contemplar do céu as vaporosas ilhas.
E quando
o ardor latente que cresta a minha fronte
Ceder à
neve algente que touca o negro monte;
Quando a
etérea asa da brisa fugitiva
Trouxer-me
os castos trenos da terna patativa,
Elevarei
meus carmes ao Ser que criou tudo,
E
dormirei sorrindo n'um leito ignoto e mudo.
[ narcisa amália, nebulosas, 1872 ]
notas_
alfombra - tapete macio; certa extensão de relva
fauce - parte da garganta próximo à laringe; abertura
crestou - tostou; queimou
devesa - mata ou arvoredo
patativa - nome que faz referência a uma ave ou a um poeta
treno - canto fúnenre
carmes - cantos ou poemas
algente - gélido; muito frio
o texto apresenta uma angústia causada por uma "ilusão perdida" (v. 5). a solução para essa dor ("fel do sofrimento") é a contemplação da obra do criador, ou seja, o universo do deus católico. é um desejo de comunhão com a natureza e, consequentemente, união com deus. de repente ajuda.
o desfecho marca este contraste entre martírios infernais e a busca de paz na hamonia com a natureza: no último verso o eu lírico sorri, talvez expondo o fim da vida finalmente em paz, ou seja, o último verso pode ser um eufemismo da morte. seria uma espécie de resignação diante de uma frustração.
gente, como assim? ficou tudo bem, no fim?...
quem desdenha quer comprar, diz lá um ditado. mas é o romantismo.
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