Ah! Toda a alma num cárcere anda presa, Soluçando nas trevas, entre as grades Do calabouço olhando imensidades, Mares, estrelas, tardes, natureza.
Tudo se veste de uma igual grandeza Quando a alma entre grilhões as liberdades Sonha e sonhando, as imortalidades Rasga no etéreo Espaço da Pureza.
Ó almas presas, mudas e fechadas Nas prisões colossais e abandonadas, Da Dor no calabouço atroz, funéreo!
Nesses silêncios solitários, graves, Que chaveiro do Céu possui as chaves Para abrir-vos as portas do Mistério?! Cruz e Sousa (1861-98)
texto de caráter simbolista: descrição do interior humano, sua angústia, além do estilo erudito com apelo ao uso de maiúsculas alegorizantes.
o soneto questiona, basicamente, a impossibilidade de uma pessoa libertar-se de suas dores, porque a alma -- a consciência -- estaria em um calabouço, presa.
o período em que produz o poeta catarinense é aquele das publicações de freud e da ascensão do estilo impressionista, na arte plástica. era necessário, pela ordem natural das coisas, combater o racionalismo infértil do parnasianismo, daí a poesia simbolista ser mais introspectiva, mais abstrata. palavras como "pureza", "céu" ou "mistério", por exemplo, usadas com maiúsculas, trazem um sentido mais universal, alegórico mesmo para elas, por exemplo, não é qualquer "dor" (verso 11) mas sim a dor -- com maiúscula -- que é a essência dela, a dor ideal, o conceito, a imutável, tornando o discurso mais intenso. a quetão é: por que haveria almas presas?
muita gente descuidada afirma que o poema simplesmente trata da alma dos escravizados, já que o poeta era negro, no século 19 etc. pode ser. pode não ser. primeiro: não está explícito no texto que se trata de humanos escravizados; segundo: o estilo literário sugere questão existencial, espiritual, que pode atingur qualquer um, não só escravizados. o poema transcende a época. continuando: o que faz com que uma parte essencial do ser humano fique atrás de grades?... é uma condenação prévia? olhem, a pergunta dos dois últimos versos também é chamado estrondoso para qualquer época. você consegue responder? hm?
Íncola de Suburra ou de Síbaris, Nasceste em saturnal; viveste, estulto, Na folia das feiras, no tumulto Dos caravançarás e dos bazares;
Morreste, em plena orgia, entre os esgares Dos arlequins, no delirante culto; E a saudade terás, depois sepulto, Heróis folião, dos carnavais hílares...
Talvez, quem sabe? a cova, que te esconda, Uma noite, entre fogos-fátuos, se abra, Como uma boca escancarada em risos:
E saltarás, pinchando, numa ronda De espectros aos tantãs, dança macabra De esqueletos e lêmures aos guizos...
[ Tarde, Bilac, 1919 ]
nota íncola - morador de algum local suburra - região de roma antiga habitada predominantemente por pessoas pobres síbaris - cidade grega fundada por aqueus antes de cristo saturnal - relativo às festas de saturno estulto - estúpido; insensato hílare - alegre fogo-fátuo - fenônemo que se dá em função de corpos em decomposição (gases) caravançará - hospedaria gratuita para caravanas no deserto pinchando - pulando; saltando
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soneto de estilo parnasiano, por conta da métrica regular, vocabulário raro e aversão à emotividade dos românticos.
aqui, sobra um caráter moralizante, uma vez que o vivente das orgias e festas morreu fazendo o que mais gostava: orgia e festa. acrescente-se a isso o fato do personagem ser figura bem pobre. na visão do poeta, esse folião depois de morto voltaria em forma de espírito fanfarrão, dançando e fazendo barulho em meio a esqueletos.
"último carnaval" é um eufemismo para dia da morte.
em suma: os foliões, mesmo depois de morrer, continuam festejando.
agora, o que a netflix tem a ver com isso? não sei. coloquei o cartaz aqui para chamar atenção.