quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

mike: o galo sem cabeça e julio cortazar

 



julio cortazar
(1914-1986), belga de pais argentinos, tem um conto, de nome "acefalia", começa assim: 

Cortaram a cabeça a um certo senhor, mas como depois estourou uma greve e não puderam enterrá-lo, esse senhor teve que continuar vivendo sem cabeça e arranjar-se bem ou mal. Em seguida ele notou que quatro dos cinco sentidos tinham ido embora com a cabeça.  dotado somente de tato, mas cheio de boa vontade, sentou-se num banco da praça Lavalle e tocava uma por uma (...) tratando de distingui-las e dar os respectivos nomes. (...) 

estudiosos com diploma dizem que cortázar passa pelo realismo fantástico ou mágico. é um tremendo paradoxo, convenhamos, dizer que algo é realista e mágico ao mesmo tempo, mas não vou discutir com doutor. aliás, nem vou contar o fim do conto por pirraça mesmo. você precisa ler. o quente vem agora: seu nome é mike. e a história é real. muita gente sabia, menos eu, que cortaram a cabeça de um galo, desde o pescoço, e o dito cujo continuou vivendo mais um ano e meio. sério. como quase tudo que é bizarro acontece nos estados unidos, foi lá mesmo que o evento se deu. 1945, no colorado: o fazendeiro lloyd resolveu preparar um galo para o jantar da sogra e, vapt, numa cortada meio mal feita, a cabeça da ave caiu, mas mike – o galo – continuou respirando. desvantagem: nada de cozido de galo, naquele dia. vantagem: ele não cantaria mais. alimentado através de um conta gotas, pingando-se mistura de leite e água em seu buraco no pescoço, o galo mike até engordou. era de fazer inveja à própria sogra de lloyd que, apesar de ter cabeça, continuava sendo sogra, se é que me entendem.


quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

proibir celular em sala de aula sem debate é absurdo

 


ideia trazida de um dos países mais conservadores do ocidente -- os estados unidos -- uma bolsa que tranca telefones celulares de estudantes, nas escolas, está em vigor, por aqui. olhem, é tremendo erro proibir celulares sem educar. mas isso é coerente com o ritmo da nossa educação. ela sempre foi conservadora. questões como  bullying, violência contra mulher, respeito à comunidade lgbt ou mesmo o racismo, raramente entram em sala. no máximo, numas postagens em mídia eletrônica ou nas pífias reuniões com professores, antes do ano letivo começar. nossas escolas ainda respiram o ensino jesúitico do brasil colônia e império: professor é autoridade. pune.
olhem, vou insistir: não resolve proibir, porque a relação professor-estudante não irá mudar só com isso. é esta relação, aliás, que faz estudantes quererem escapulir daquele ambiente, daquela rotina. por quê? porque a maioria dos assuntos tratados em sala não corresponde à realidade de humanos jovens. há muita erudição, diletantismo, nos currículos. assuntos que fariam sentido para quem já estivesse na universidade. para além de assuntos distantes da realidade, é urgente que outras ações entrem em sala também, como estas que listei acima: bullying; cidadania, política etc.

pra quem não entendeu: não prego a liberação total de uso dos tais aparelhos durante as aulas, mas sim discutir e argumentar com estudantes por que os aparelhinhos devem ficar na mochila ou desligados. precisa ser simples. muitos educadores não querem este trabalho e preferem apenas proibir. cansa.

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clica pra ver matéria sobre celular proibido na escola 2024

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024

jogador ruim ou sistema de jogo mal colado?

 


[ arte: carlos h carneiro via i. a. ]

"(...) Precisamos desneymarizar nosso futebol e um bom começo seria refundando a CBF como um todo. Repensar o jogo a partir de nossas brasilidades, essas que o professor Luiz A Simas ensina que vivem nas frestas. Parar de imitar o que fazem na Europa e de importar a espetacularização que os Estados Unidos associam ao esporte. Resistir à força privatizadora que invade todas as áreas de nossas vidas. Salvar nosso futebol para que, desse modo, possamos oferecer, como alternativa, uma rota de fuga a essa brutal ordem social que nos assola…"

                               [ milly lacombe - portal uol - fevereiro 2024 ]

concordo com essa teoria de milly porque a gente vê o futebol brasileiro mal gerido e só faz os fãs passarem vergonha. é uma tragédia. calendário estúpido, contendo torneios regionais que melhoram zero tanto espetáculo como técnica. são torneios semi-amadores e, claro, deveriam existir neste âmbito: dentro de segundas e terceiras divisões, em seus estados. não se trata, por exemplo, de acabar com os estaduais, mas construir um campeonato mais longo, com mais equipes -- as tais "pequenas" -- para que estas então, joguem mais do que esses quatro meses. as agremiações tidas como "grandes" jogariam torneio regional com menos datas, como se fosse uma pré-temporada, com menos desgastes. olhem, é urgente a criação da série "e", no país. além de torneios regionais decentes, como a copa nordeste. 
tem mais: muitos supostos comentaristas de futebol fazem coro com as viúvas de pelé e dizem que jogadores são ruins, hoje. é patético. jogadores ruins sempre existiram. alguns até foram pra copa do mundo, como gil (
avançado), marinho chagas (lateral), henrique (defensor) ou dario dadá (avançado). e milhares de outros pernas de pau por aí, povoando nossos campos. a questão é fácil: o sistema de jogo, no passado, valorizava transição rápida do meio ao ataque, além do drible, claro. hoje, isso acabou porque na europa não é assim. jogador que dribla muito e parte pra cima das linhas adversárias deixa seu setor descoberto. o melhor -- para europeus -- é o passe, deslocamento curto etc... isso é bom? é ruim? é europeu, ponto. agora, por que copiar? resposta: porque é preciso exportar jogadores jovens que não precisem adaptação, quando forem vendidos para europa, evitando prejuízos a seus agentes e clubes.

terça-feira, 13 de fevereiro de 2024

arte tem preço ou valor?

 

                                                                rafael sanzio por guidobaldo da montefeltro

no começo do mês, na avenida "norte-sul", aqui em campinas, um garoto de pouco mais de um metro de altura equilibrava bolas de tênis -- era a parada do semáforo --, ele  fazia malabarismo com elas, na cabeça, pelo ombro, mãos pra cima e pra trás, às vezes uma escapulia, mas rapidamente se refazia e pronto, lá iam asquatro ou cinco bolas pra cima. alguns motoristas dão umas moedas. outros, um aceno. quanto valeu o show? um real? cinco reais? é pouco? é muito?
no começo do mês de maio, lá de 2010, descobriram uma peça que teria sido pintada pelo renascentista raffael sanzio (1483-1520). uma cabeça de mulher, de uns 30 cm. estava num depósito de um museu, na itália. pelos informes, valia 30 milhões de euros, mais de 150 milhões, em moeda brasileira, hoje. pouco? muito? 

qual o valor da arte? o que deveria sustentar o artista, num universo capitalista a quem a força de trabalho é o único objetivo? no tal sistema, vende-se a força de trabalho ao outro, vende-se identidade. e a arte?  qual função? sua utilidade passa pela transmissão de sensação, fruição, deleite, informação, folclore, história, muita coisa. arte completa o ser humano. arte revela o que não se vê usando apenas a razão. 
quanto vale a partitura original dos concertos de brandenburgo, de bach? quanto custa a igreja s francisco de assis, em ouro preto, no traço de aleijadinho? e o original de "dom casmurro", tem preço? uma folha de cordel, um corte de bordado... dá pra medir em centavos o preço de uma peça de expedito, lá no piauí? e uma escultura de joão do monte, em valinhos? quanto vale o casal de noivos, do mestre vitalino?
esse texto está com perguntas demais... não é bom.

                           
    [ rafael e a fornarina por jean ingres, séc 19 ]

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sexta-feira, 9 de fevereiro de 2024

o caminho difícil


[ rouseeau ]

no livro "conto da ilha desconhecida" (saramago), um homem pede um barco ao rei mas, em princípio, não sabe aonde vai. quer chegar a uma ilha que ninguém conhece. será caminho difícil, pois terá de passar por si próprio.
dante, na "divina comédia", acaba se perdendo, numa floresta e precisa de ajuda... ele também desconhece o caminho a percorrer... vai ser difícil, pois enfrentará só o inferno.
um homem do campo, no conto "a terceira margem do rio" (rosa) expõe a mesma sensação de perda e desconstrução: ele faz um pequeno barco e, sozinho, sai, rio acima, abaixo, num ritmo só seu, adentro, para sempre. vai ser caminho difícil... -- ou o que esse homem passava estava difícil, a gente só imagina.
olhem, pouca gente sai do trilho da razão para seguir um instinto próprio. dizem que ser humano seria sociável, e rousseau, lá no século 18... ah, esquece.

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2024

terça-feira gorda - caio fernando abreu - comentário

 

                                                      caio fernando abreu (1948 - 96)

o texto se inicia com a descrição de uma dança sedutora de um homem para outro homem,  sendo este último, o narrador. 

De repente ele começou a sambar bonito e veio vindo para mim. Me olhava nos olhos quase sorrindo, uma ruga tensa entre as sobrancelhas, pedindo confirmação. Confirmei, quase sorrindo também, a boca gosmenta de tanta cerveja morna, vodca com coca-cola, uísque nacional, gostos que eu nem identificava mais, passando de mão em mão dentro dos copos de plástico. Usava uma tanga vermelha e branca, Xangô, pensei, lansã com purpurina na cara, Oxaguiã segurando a espada no braço levantado, Ogum Beira-Mar sambando bonito e bandido. Um movimento que descia feito onda dos quadris pelas coxas, até os pés, ondulado, então olhava para baixo e o movimento subia outra vez, onda ao contrário, voltando pela cintura até os ombros. (...)

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o trecho lembra os movimentos de rita baiana, em "o cortiço", do aluísio azevedo, 1890.
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Entreaberta, a boca dele veio se aproximando da minha. Parecia um figo maduro quando a gente faz com a ponta da faca uma cruz na extremidade mais redonda e rasga devagar a polpa, revelando o interior rosado cheio de grãos. Você sabia, eu falei, que o figo não é uma fruta mas uma flor que abre para dentro. O quê, ele gritou. O figo, repeti, o figo é uma flor. Mas não tinha importância (...)

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a sequência é o envolvimento dos dois homens, durante um baile de carnaval. o primeiro, além de seduzir o narrador em meio a sua dança e a proximidade dos corpos suados, oferece droga a ele -- narrador -- que, apesar de negar no início, aceita. eles vão à praia, saindo do salão; se envolvem pela areia.
na sequência surgem muitas pessoas. elas espancam a dupla. o narrador não consegue ajudar seu parceiro. foge.

 Fechando os olhos então, como um filme contra as pálpebras, eu conseguia ver três imagens se sobrepondo. Primeiro o corpo suado dele, sambando, vindo em minha direção. Depois as plêiades, feito uma raquete de tênis suspensa no céu lá em cima. E finalmente a queda lenta de um figo muito maduro, até esborrachar-se contra o chão em mil pedaços sangrentos.       
                                                        [ fim ]
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a queda do figo representa o fim trágico, dolorido, da paixão. figo pode sim ser um símbolo fálico,  símbolo da relação homoafetiva, ali, entre eles. 
as referências a xangô, iansã, oxaguiã e ogum dão o tom pagão, mais orgânico à relação homoafetiva. vale lembrar que o texto é do século 20, saiu em 1982. lá, a questão da homossexualidade era ação condenável, praticamente um crime. vide o desfecho desta narrativa. as bênçãos de orixás africanos são a verdadeira justiça para essa ação amorosa e, claro libertadora.
figo e plêiades -- em "terça-feira gorda" -- são alegorias de desejo. ia dizer alegorias de amor, desisti. mais do que isso, figo e plêiades evocam natural liberdade, mesmo que um esteja esborrachado no chão e outro tão distante no céu.

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