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início do século 21. o rio de janeiro ganha mais
uma estátua de notório valor: clarice lispector. chamo atenção para quatro figuras públicas e que não são cariocas: cristo, drummond, clarice e dorival caymmi. todos com estátua, na cidade maravilhosa.
por outro lado, o carioca mais famoso do mundo, agenor oliveira -- o cartola --, não ganhou o
mesmo agrado. olhem, até romário tem estátua...
vejam que cariocas ilustres como tom jobim, noel e machado de assis, ganharam o mimo também. e glória maria? para ela, nada de estátua...
também estão na fila, pelo menos
até a publicação desta crônica, fluminenses brilhantes: chiquinha gonzaga, dona ivone lara e arlette pinheiro. sim, arlette, mais conhecida pelo pseudônimo: fernanda montenegro.
caio fernando abreu (1948-1996)
início da narrativa "além do ponto" -- caio f abreu:
Chovia, chovia, chovia e eu ia indo por dentro da chuva ao encontro dele, sem guarda-chuva nem nada, eu sempre perdia todos pelos bares, só levava uma garrafa de conhaque barato apertada contra o peito, parece falso dito desse jeito, mas bem assim eu ia pelo meio da chuva, uma garrafa de conhaque na mão e um maço de cigarros molhados no bolso (...) - [ morangos mofados ]
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o narrador caminha pela chuva com cigarro e garrafa, na cidade que parece não colaborar com a caminhada. carros espirram lama em seu corpo. mas, segundo a narração, é preciso ir ao encontro dele, de alguém que supostamente o espera e vai acolher seu corpo molhado. haverá música, vinho, roupas secas.
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eu revia daquele jeito estranho de já ter estado lá sem
nunca ter, hesitava mas ia indo, no meio da cidade como um invisível fio saindo
da cabeça dele até a minha, quem me via assim molhado não via nosso
segredo, via apenas um sujeito molhado sem capa nem guarda-chuva, só uma
garrafa de conhaque barato apertada contra o peito. Era a mim que ele
chamava, pelo meio da cidade, puxando o fio desde a minha cabeça até a dele,
por dentro da chuva, era para mim que ele abriria sua porta (...) - [ morangos mofados ]
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repara que a narração, no trecho acima, já admite que ele pode nunca ter estado ali antes... por isso, um caminhar confuso. o narrador vai tropeçar, a garrafa bate na pedra, se quebra, escorre conhaque pelo corpo como um sangue de álcool . enfim, ele chega a um lugar e bate à porta. pessoa alguma atende. nada. fim do texto.
o que estava levando o narrador obstinadamente àquela porta? um delírio, um sonho, uma alucinação de apaixonado? pelo jeito, trata-se de uma história de busca frustrada por amor. é o caminho angustiante de alguém que se deteriora e escorre como água da chuva. o álcool pode ter contribuído para este estado. ele ficará batendo -- ad infinitum -- naquela porta, um sísifo urbano.
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saiba mais:
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o verso da primeira fotografia
um dos primeiros portugueses que, oficialmente, deixou sua marca por durban, áfrica do sul, foi bartolomeu dias, em 1488. no mesmo lugar, viveu parte da adolescência, o poeta fernando pessoa. ele chegou em 1896, em função do trabalho do padrasto, o cônsul joão rosa. na cidade de durban, pessoa escolheu um heterônimo: c.r. anon (brincadeira com "anônimo").
em 1905, o português das múltiplas personalidades deixava a áfrica do sul.
na cidade, há um relógio em sua memória e uma estátua para bartolomeu dias, a quem pessoa dedicou versos:
Jaz aqui, na pequena praia extrema
O Capitão do Fim
Dobrado o Assombro,
O mar é o mesmo:
Já ninguém o tema!
(...)
[in "Mensagem"]
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"diálogo", do livro "morangos mofados", texto em discurso direto, na estrutura de um drama, uma peça teatral. veja as primeiras linhas e o final:
A: Você é meu companheiro.
B: Hein?
A: Você é meu companheiro, eu disse.
B: O quê?
A: Eu disse que você é meu companheiro.
B: O que é que você quer dizer com isso?
A: Eu quero dizer que você é meu companheiro. Só isso.
B: Tem alguma coisa atrás, eu sinto.
A: Não. Não tem nada. Deixa de ser paranóico.
(...)
A: Eu quero que você seja meu companheiro, eu disse.
B: O quê?
A: Eu disse que eu quero que você seja meu companheiro.
B: Você disse?
A: Eu disse?
B: Não. Não foi assim: eu disse.
A: O quê?
B: Você é meu companheiro.
A: Hein?
(ad infinitum)
[ fim ]
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enquanto "A" questiona B sobre ser seu companheiro, "B" desconversa. até que na última fala de "B", este assume que é o companheiro de "A" mas agora é "A" que parece não entender. e assim deve seguir o diálogo, confuso, sem a interação objetiva. um diálogo interditado pela dificuldade de compreensão entre ambos. até o infinito. é a falta de entendimento. o assunto aqui é ser companheiro do outro. pois que no final século 20 -- de onde veio o livro de caio --, em alguns setores da sociedade, referir-se a alguém como "companheiro", "companheira" era sinal de intimidade, confiança, compromisso, amor mesmo. pelo jeito, neste caso, o amor truncado, a falta de clareza e o medo imperam na troca de palavras, nesse texto que abre "morangos mofados".
o livro, como um todo, traz a tônica de relações truncadas, quebra de expectativa e frustrações, além de poucos momentos de prazer.
o texto "diálogo" -- com perdão da redundância -- dialoga com "além do ponto", narativa do mesmo livro "morangos mofados".
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