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sábado, 12 de abril de 2025

aparição - sophia de mello bryener andresen - comentário

                                    

 
     Aparição

  Devagar devagar um homem morre
  Escura no jardim a noite se abre
  A noite com miríades de estrelas
  Cintilantes límpidas sem mácula

  Veloz veloz o sangue foge
  Já não ouve cantar o moribundo
  Sua interior exaltação antiga
  Uma ferida no seu flanco o mata

  Somente em sua frente vê paredes
  Paredes onde o branco se retrata
  Seus olhos devagar ficam de vidro
  Uma ferida no seu flanco o mata
 
  Já não tem esplendor nem tem beleza
  Já não é semelhante ao sol e à lua
  Seu corpo já não lembra uma coluna
  É feito de suor o seu vestido
  A sua face é dor e morte crua

  E devagar devagar o rosto surge
  O rosto onde outro rosto se retrata
  O rosto desde sempre pressentido
  Por aquele que ao viver o mata

  Seus traços seu perfil mostra
  A morte como um escultor
  Os traços e o perfil
  Da semelhança interior.

         [ O Cristo cigano, Sophia de M B Andresen, 1961 ]

poema relata a morte de cristo, com um golpe no flanco, como descreve o novo testamento, quando da crucificação. contudo, o poema traz o nome "aparição". ou seja, alguma ressurreição.

agora, se liga nessa história: sophia breyner encontrou-se com joão cabral de melo neto, em sevilha, espanha, onde vivia o brasileiro que era também diplomata. lá, ela ouviu a lenda de que o escultor espanhol francisco gijón, no final do século 17, recebera uma encomenda de um cristo em agonia. para este fim, o tal artista buscou uma cena que pudesse ver alguém morrendo para conseguir inspiração e fazer seu trabalho. para isso, presenciou o esfaqueamento de um cigano e, assim, obteve material visual que precisava. depois de pronta a peça de madeira, muita gente reconheceu o cigano -- apelidado  "cachorro" -- e passaram então a chamar a capela onde a escultura está de "capela do cachorro". a obra é o "cristo de la expiración" ou "el cachorro de triana". 
na sequência, ele ressurge, já sem beleza nem esplendor. o rosto divino surge, porque é o rosto esperado pelo escultor do início do livro.  quanto mais vivia o anterior, humano, mais este que aparece ficaria morto. ou seja, era necessária a morte do primeiro para que o segundo rosto viesse, feito de dor, sangue, suor, que é o rosto mais conhecido pelas pessoas, os ditos fiéis e os nem tanto. quem esculpiu o novo rosto "de morte crua" foi a própria morte. ela, que já morava no primeiro cristo todo o tempo.

a influência no estilo, diz a própria poetisa, é de joão cabral -- citado nominalmente, no primeiro poema do livro, "a palavra faca". porém, a densidade é bem fernando pessoa, convenhamos. 

logo, de quem se fala em "aparição"? quem aparece?
sim, é a morte. nada mais.


sábado, 8 de março de 2025

trevas - sophia de mello bryener - comentário

 

                                              [ francisco gijón, cristo em agonia, séc 17 ]

            7.  Trevas

       O que foi antigamente manhã limpa
       Sereno amor das coisas e da vida
       É hoje busca desesperada busca
       De um corpo cuja face me é oculta.


                [ O cristo cigano, 1961, Sophia de M B Andresen ]
   

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este é o sétimo poema de "o cristo cigano".  

aqui, pode ser a voz do escultor -- que aparece no poema 1 -- que está buscando uma imagem de um cristo em agonia para construir sua estátua. 

agora, se liga nessa história: sophia breyner encontrou-se com joão cabral de melo neto, em sevilha, espanha, onde vivia o brasileiro que era também diplomata. lá, ela ouviu a lenda de que o escultor espanhol francisco gijón, final do século 17, recebera uma encomenda de uma estátua de um cristo em agonia. para este fim, o tal artista buscou uma cena em que pudesse ver alguém morrendo para conseguir inspiração e fazer seu trabalho. para isso, presenciou o esfaqueamento de um cigano e, assim, obteve material visual que precisava. depois de pronta a peça de madeira (foto acima), muita gente reconheceu o cigano -- apelidado  "cachorro" -- e passaram então a chamar a capela onde a escultura está de "capela do cachorro". a obra é o "cristo de la expiración" ou "el cachorro de triana". 

voltando ao poema 7. parece uma legenda desta história que você leu no parágrafo anterior. há uma inquietação muito grande e, por isso, o que se seguirá é o esfaqueamento do cigano, como se vê nos últimos poemas do livro.

  . . . .  .   .

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terça-feira, 28 de janeiro de 2025

nebulosas - livro de narcisa amália - comentário

 




narcisa amália de campos (1852-1924)
nasceu em são joão da barra, rio de janeiro e faleceu na cidade do rio de janeiro

"nebulosas": poesias românticas com algum teor crítico. isso a aproxima do que fez castro alves, na mesma época, ou seja, na segunda metade do século 19. o livro de narcisa é de 1872. 
o livro apresenta três partes: a primeira com um poema apenas, "nebulosas"; a segunda com 27 poemas e a terceira, 16 poemas. o texto que abre esta última parte é justamente "castro alves".
no geral, o que chama atenção do leitor, hoje, é o excesso de termos raros, uma escolha lexical que pode cansar o leitor apressado, dificultando a interpretação, num primeiro momento. é preciso estar sempre próximo a um dicionário.

no conjunto, a obra "nebulosas" é de lirismo denso, místico, lavado de cristianismo e melancolias. a natureza é constantemente citada como cúmplice das emoções, em muitos poemas. o livro "nebulosas" também traz atmosfera contemplativa e, muitas vezes, mora aí o elemento divino. recheado de adjetivos, é puro romantismo.
o aprimoramento técnico no trabalho com a linguagem chama atenção justamente num universo em que o feminino pouco transitava: o mundo erudito (e masculino) das letras, século 19.

veja o poema "nebulosas" que abre o livro:


            NEBULOSAS

 No seio majestoso do infinito,

– Alvos cisnes do mar da imensidade –

Flutuam tênues sombras fugitivas

Que a multidão supõe densas caligens,

E a ciência reduz a grupos válidos;

Vejo-as surgir à noite, entre os planetas,

Como visões gentis à flux dos sonhos;

E as esferas que curvam-se trementes

Sobre elas desfolhando flores d'ouro,

Roubam-me instantes ao sofrer recôndito!

Costumei-me a sondar-lhe os mistérios

Desde que um dia a flâmula da ideia

Livre, ao sopro do gênio, abriu-me o templo

Em que fulgura a inspiração em ondas;

A seguir-lhes no espaço as longas clâmides

Orladas de incendidos meteoros;

E quando da procela o tredo arcanjo

Desdobra n'amplidão as negras asas,

Meu ser pelo teísmo desvairado

Da loucura debruça-se no pélago

Sim! São elas a mais gentil feitura

Que das mãos do Senhor há resvalado!

Sim! De seus seios na dourada urna,

A piedosa lágrima dos anjos,

Ligeira se converte em astro esplêndido!

No momento em que o mártir do calvário

A cabeça pendeu no infamo lenho,

A voz do Criador, em santo arrojo,

No macio frouxel de seus fulgores

Ao céu arrebatou-Ihe o calmo espírito!

Quando desci mais tarde, deslumbrada

De tanta luz e inspiração, ao vale

Que pelo espaço abandonei sorrindo

E senti calcinar-me as débeis plantas

Do deserto as areias ardentíssimas:

Ao fugir das cendais que estende a noite

Sobre o leito da terra adormecida,

Fitei chorando a aurora que surgia!

E - ave de amor - a solidão dos ermos

Povoei de gorjeios melancólicos!..

Assim nasceram os meus tristes versos,

Que do mundo falaz fogem às pompas!

Não dormem eles sob os áureos tetos

Das térreas potestades, que falecem

De morbidez nos flácidos triclínios!

Cortando as brumas glaciais do inverno

Adejam nas estâncias consteladas

Onde elas pairam; e à luz da liberdade

Devassando os mistérios do infinito,

Vão no sólio de Deus rolar exânimes...

                                

     notas_

  frouxel – qualidade daquilo que é macio; penugem macia

  flux  -  abundamente; não deixar escapar nada

  infamo – difamado; desonrado

  procela  -  tempestade

  tredo  -  falso; traidor

  pélago – espécie de abismo oceânico

  triclínio  - roma antiga: sala de jantar com três leitos (similares a               sofás) - eram símbolo de luxo e ociosidade

  cendais - tecidos finos e transparentes

  clâmide – manto, na grécia antiga, que se prendia com um broche

  exânime  -  quase morto; moribundo

  sólio  - acento elevado típico de uso real

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poema "nebulosas" apresenta o eu lírico em dois momentos distintos: no início, a comparação do céu estrelado com "alvos cisnes do mar da imensidade" traz sensações de leveza e beleza etérea. a imagem dos cisnes sugere movimento gracioso e harmonia. num outro momento, embebida nas reflexões e no êxtase de encantamento, cita a morte de cristo e começa a fazer ponderações sombrias sobre a vida.

o poema é uma espécie de justificativa aos demais do livro.  "nebulsosas" é o primeiro poema. 

no desfecho do poema"nebulosas," o sentimento de leveza e pureza dá lugar a uma visão um pouco mais pesada e melancólica da existência. de modo metalinguístico, o eu lírico confessa que então os versos ficaram tristes.

a presença dos triclínios faz contraste com a imensidão divina das nebulosas, ou seja, a pequenez da vida humana e seus luxos não alcançam a beleza e a energia das nebulosas.
as linhas finais, como "cortando as brumas glaciais do inverno" e "vão no sólio de deus rolar exânimes" mostram que a busca por compreensão e inspiração se esgota, resultando em resignação. a leveza do início transforma-se em um peso existencial, revelando que a pureza não resistiu às profundezas reflexivas do eu lírico. as nebulosas são símbolo de beleza e mistério, aqui. o caráter divino (cristão) é presente no poema, assim como em praticamente todo o livro. 
a visão final é de uma conexão com o divino, mas marcada por sacrifício e dor, ao invés da pureza intocada que aparece no começo.


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sábado, 17 de agosto de 2024

ceia - josé paulo paes

 

                                                          José P Paes  1926-98 

     C E I A

   Pesca no fundo de ti mesmo o peixe mais luzente.
   Raspa-lhe as escamas com cuidado: ainda sangram.

   Põe-lhe uns grãos do sal que trouxeste das viagens
   e umas gotas de todo o vinagre que tiveste de beber
                                                                          na vida

   Assa-o depois nas brasas que restem em meio
   a tanta cinza

  Serve-os aos teus convivas, mas com pão e vinho
  do trigo que não segaste, da uva que não colheste

  mas que de alguma forma foram pagos
  em tempo ainda hábil

  pelo teu muito suor e por um pouco do teu sangue
  Não te desculpes da modéstia da comida

  Ofereceste o que tinhas de melhor

  Podes agora dizer boa-noite, fechar a porta, apagar a luz

  e ir dormir profundamente. 

  Estamos quites
  tu e eu, teu mais hipócrita leitor

                    [ prosas seguidas de odes mínimas, 1992 ]

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poesia que encerra a primeira parte do livro "prosas seguidas de odes mínimas", 1992.

são duas as partes, a saber: "prosas" com vinte textos e "odes mínimas", 13 poemas.

esta "ceia" evoca uma ideia de finitude. tem marca bíblica sim, do novo testamento. o catolicismo aparece em outros poemas, como "ao shopping center" e "a um recém-nascido", por exemplo.
aqui, numa paráfrase da refeição clássica de cristo, o eu lírico (um leitor bíblico) se dirige a jesus: pede a ele que use peixe na ceia. uma atividade trivial que humaniza um tanto a figura divina. sabe-se que, no original do novo testamento, não havia peixe. é uma interferência do poeta.
a presença da morte, no eufemismo "dormir profundamente" também traz o filho de deus para mais perto.

"dormir profundamente" lembra manuel bandeira e seu "profundamente".

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quarta-feira, 26 de junho de 2024

resumo das notícias do dia

 

                                                     [ ilustração por c h carneiro - via i.a. ]


        resumo das notícias do dia


           vamos morrer

           mas não agora


segunda-feira, 24 de junho de 2024

poesia falada é slam

 

alê barreto (slam capão, s paulo)

em 2009, a amiga julia ciasca estava na alemanha. de lá, ela me falaou do poetry slam, evento literário que então acontece uma sexta feira por mês, desde 1997. ocorre em bares e clubes, dentre outros espaços. a coisa toda, na alemanha, se chama statz nach vorn, algo como "frase adiante". existe classificação, júri e prêmios.
fico pensando em incluir poesia nas próximas olimpíadas, já que pela grécia essa atividade artística -- o versejar -- era sempre exaltada. são três minutos que o ser humano tem para transmitir seu texto. não pode música. nem figurino específico. eu ganharia fácil do gabriel, o pensador, certeza. pois então fica uma dica excelente, nos mundos da poesia orgânica e ao vivo... se você já ouviu falar em "sarau", pode atualizar.
obrigado ju ciasca. slam incorporado com sucesso.
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    clica pra ver a literatura da coisa



quinta-feira, 4 de abril de 2024

para viver um grande quadro

 

                                  [Vinícius de Moraes, 1938 – óleo –  56 x 47 cm  - Portinari]

                            [Maria L Proença, 1938 – óleo –  60 x 73 cm  - Portinari]

 

durante muito tempo, não soube que cândido portinari tinha feito retrato do poetinha. e ainda jovem. folheando "para viver um grande amor", do vinícius, achei uma crônica em que ele reclama com a filha susana, a posse do quadro. ela, prestes a casar-se, levaria consigo a peça de portinari. a questão era coerente: a nova namorada de vinícius (futura esposa) tinha sido também retratada por portinari: maria lúcia proença. o traço do pintor traz uma sobriedade que talvez não combinasse com ele, mas quem sabe do que se passa em mente de artista? se susana devolveu-lhe o quadro, não sei. só garanto que tenho um tanto de inveja desses anos 1930, 40, 50, no rio de janeiro, por onde passaram figuraças da música, arquitetura, cinema, literatura… de drummond a guimarães rosa, de vinícius a tom jobim... também clarice, maria martins, niemeyer, garrincha, cariocas ou não, estavam por lá, através do mundo da política, arte ou simplesmente pela boemia. dizem que tempo bom é o que a gente faz, então me acalmo… daí, não penso mais em um retrato meu, feito por portinari… difícil. primeiro, o pintor está morto; segundo, vinícius não me emprestaria a camisa rosada.

  . . . . . .  .  .  .  .  .  .   .   .    .     .

 clica e conheça os casamentos de vinícius 

 clica para saber mais sobre suas mulheres

 [ supreenda-se com uma personagem de lobato no meio de tudo ]

quinta-feira, 21 de março de 2024

balancete - josé paulo paes - comentário

 


[ J P Paes - 1926-88 ]

      BALANCETE   
                                        José Paulo Paes 

   A esperança: flor
   seca mas (acaso
   ou precaução?) guardada
   entre as páginas de um livro.

   A incerteza: frio
   de faca cortando
   em porções cada vez menores
   a laranja dos dias.

   O amor: latejo
   de artéria entupida
   por onde o sangue se obstina
   em fluir.

   A morte: esquina
   ainda por virar
   quando já estava quase esquecido
   o gosto de virá-las.

          [in "prosas seguidas de odes mínimas", cia das letras]

balancete :  documento que mostra movimentações financeiras em um certo período, numa empresa; serve também para identificar prejuízo ou lucro

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numa gradação que indica fim de vida, "balancete" apresenta pequena lista de temas que são caros ao humano comum, como "esperança", "dúvida" (medo); "amor" e "morte".

aqui, cada tema é tratado de modo a expor o seu lado triste, estéril, num pessimismo digno de fim de século.
a flor entre páginas de livro dá falsa esperança de que ainda haveria vida por ali. agora, cortar laranjas em porções menores fornece ideia de um desespero, necessidade de guardar, de adiar o fim da fruta, adiar o fim da vida...
ao final, a morte seria esse virar de página, ou seja, uma passagem para outras esferas... interessante que, na primeira estrofe, a metáfora da esperança esteja num livro com flor seca dentro. ao final, nova metáfora envolvendo livro: virar página da vida. o fim.

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sexta-feira, 13 de outubro de 2023

somos todos passarinhos

 

                                 



fim de jogo entre santos e palmeiras. outubro, 2023. vitória do time da praia. na entrevista, o técnico derrotado abel ferreira disse: “(...) fomos passarinhos na forma como sofremos os dois gols… já contra o boca, fomos passarinhos na forma como sofremos o gol”.

metáfora instigante porque é raro, no contexto do futebol, uso de prosa poética. fomos passarinhos, disse abel. o que pode ser? foram leves demais? voaram ao invés de correr pelo campo de jogo? ficaram cantando enquanto as formigas do santos e boca júniors trabalhavam? pode ser tudo isso.
olho pela janela, a vida urbana fervendo: entregadores de comida, ônibus, barulho do cortador de grama, cães, muitos carros, muita gente ainda apressada. um eterno clássico, desafio nós-contra-eles. e eles estão ganhando.

olhem, acho que fomos todos passarinhos, alguma vez na vida. fomos passarinhos porque não combatemos a escravidão devidamente; fomos passarinhos quando elegemos políticos anti-democráticos; fomos passarinhos quando abandonamos às queimadas a vida da nossa natureza. seria bom que fôssemos passarinhos de verdade, espalhando semente pra viver, cantoria e poesia para o resto. obrigado, abel, pela poesia ativa.

 . . . . . .  .  .   .

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quinta-feira, 1 de junho de 2023

aos óculos - josé paulo paes - comentário

 


         AOS ÓCULOS   [ José Paulo Paes ]

    só fingem que põem
 
    o mundo ao alcance

    dos meus olhos míopes.

    já não vejo as coisas

    como são: vejo-as como querem

    que eu as veja.
 
    logo, são eles que vêem,

    não eu que, cônscio

    do logro, lhes sou grato

    por anteciparem em mim

    o Édipo curioso

    de suas próprias trevas.

    [in "prosas seguidas de odes mínimas", 1992]

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dos doze versos, pelo menos quatro com cinco sílabas poéticas, sugerindo, logo de início, um ritmo tradicional, a redondilha menor.
as lentes dos óculos mentem a realidade. as lentes podem ser essa representação de consumismo, como já se viu no poema "ao shopping center", no mesmo livro. as lentes são parte de um sistema social que dirige a pessoa. essa estrutura ideológica faz com que o poeta perca noção de realidade e passe a se comportar de acordo com o que outros querem. a identidade do poeta fica em risco. o verso "são eles que vêem" confessa a presença desse sistema.
a citação a édipo refere-se ao final da tragédia grega, quando este fura os olhos, cegando a si mesmo, para não ver a realidade. logo, os óculos se apresentam como aquele filtro enganoso... talvez pior do que isso: aquilo que cega mesmo.
 . . . . . . . .  .  .  .  .  .   .

  saber mais? veja-me!

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sexta-feira, 25 de novembro de 2022

escolha de túmulo - josé paulo paes - comentário

 



                                                      [ j p paes - por osvalter ]


        
 ESCOLHA DE TÚMULO
                             José Paulo Paes

                               Mais bien je veus qu'un arbre
                             m'ombrage au lieu d'un marbre.  - Ronsard -

  Onde os cavalos do sono
  batem cascos matinais.

  Onde o mundo se entreabre
  em casa, pomar e galo.

  Onde ao espelho duplicam-se
  as anêmonas do pranto.

  Onde um lúcido menino
  propõe uma nova infância.

  Ali repousa o poeta.

  Ali um voo termina,
  outro voo se inicia.

     [in "prosas seguidas de odes mínimas", cia das letras]
   . . . . . . . . .  .  .  .  .  .  .   .   .   .

se você não sabe francês, a epígrafe de ronsard diz algo mais ou menos assim, tradução livre:
"só quero que uma árvore me faça sombra ao invés de um mármore".

poema com tema ligado à morte. a repetição "onde", no início de verso é conhecida como "anáfora", uma figura de linguagem.
o que temos, nese texto, é uma sequência de imagens ligadas ao fim da vida: "cavalos do sono", "pranto", "voo", "repousa" etc são uma maneira mais suave de descrever a passagem da vida para a morte, o que traz o nome de "eufemismo", outra figura de linguagem. 
vale lembrar que, pelo conjunto da obra de paes, podemos dizer que essa repetição de "onde" lembra uma reza, uma espécie de ladainha.
a figura do menino propondo nova história não deixa de ser um clichê que bem pode se ligar ao cristianismo e àquelas imagens de anjos, querubins e afins. contudo, a riqueza da proposta está no que o menino oferece: não se trata de outra vida, eternidades ou companhias divinas, mas sim uma outra infância. é inusitado. simbólico até o talo, faz crer que a infância é a melhor vida, porque livre, porque prestes a aprender tudo... é bem bonito. é literatura.

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 saiba mais:


quarta-feira, 9 de novembro de 2022

ao shopping center - josé paulo paes - comentário

 

                                                          [josé paulo paes 1926 - 98]

       AO SHOPPING CENTER
                   José Paulo Paes

    Pelos teus círculos

    Vagamos sem rumo

    Nós almas penadas

    Do mundo do consumo.

    Do elevador ao céu

    Pela escada ao inferno:

    Os extremos se tocam

    No castigo eterno.

    Cada loja é um novo prego em nossa cruz.

    Por mais que compremos

    Estamos sempre nus

    Nós que por teus círculos

    Vagamos sem perdão

    À espera (até quando?)

   Da Grande Liquidação.

 

     [in: "prosas seguidas de odes mínimas", cia das letras]
   . . . . . . . . .  .  .  .  .  .  .   .   .   .


criticando o consumismo, o eu lírico junta o espaço do shopping ao momento do julgamento final, à moda católica. o poeta afirma que "vagamos sem perdão", uma vez que o consumismo é símbolo de vaidade, ação tão condenada pelos católicos. olhem, gostar de si, querer agradar ao próprio ser é ruim para essa religião porque é a chance de que a pessoa seja mais dona de seus próprios atos e deixe de dar ouvidos a histórias de outros mundos.

aqui, o eu lírico não está criticando o catolicismo e suas leis punidoras, pelo contrário, condena os que frequentam shoppings centers e os trata como seres vazios. "cada loja é um prego" significa o erro de ser consumista, ou seja, ir ao shopping tira da pessoa a chance de ir à igreja. o poeta pune aquele(a) que compra.
o texto tem o caráter de uma "ode", ou seja, uma homenagem, na tradição clássica. no caso, uma grande ironia, como se lê ao final.
essas pessoas consumistas vazias esperam o grande perdão por serem o que são: consumidores. "grande liquidação", ao final, é t
rocadilho digno de aplauso. é instigante. é literatura.

  . . . . . . .  .  .  .  .   .   .   .


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