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quinta-feira, 4 de abril de 2024

para viver um grande quadro

 

                                  [Vinícius de Moraes, 1938 – óleo –  56 x 47 cm  - Portinari]

                            [Maria L Proença, 1938 – óleo –  60 x 73 cm  - Portinari]

 

durante muito tempo, não soube que cândido portinari tinha feito retrato do poetinha. e ainda jovem. folheando "para viver um grande amor", do vinícius, achei uma crônica em que ele reclama com a filha susana, a posse do quadro. ela, prestes a casar-se, levaria consigo a peça de portinari. a questão era coerente: a nova namorada de vinícius (futura esposa) tinha sido também retratada por portinari: maria lúcia proença. o traço do pintor traz uma sobriedade que talvez não combinasse com ele, mas quem sabe do que se passa em mente de artista? se susana devolveu-lhe o quadro, não sei. só garanto que tenho um tanto de inveja desses anos 1930, 40, 50, no rio de janeiro, por onde passaram figuraças da música, arquitetura, cinema, literatura… de drummond a guimarães rosa, de vinícius a tom jobim... também clarice, maria martins, niemeyer, garrincha, cariocas ou não, estavam por lá, através do mundo da política, arte ou simplesmente pela boemia. dizem que tempo bom é o que a gente faz, então me acalmo… daí, não penso mais em um retrato meu, feito por portinari… difícil. primeiro, o pintor está morto; segundo, vinícius não me emprestaria a camisa rosada.

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 clica e conheça os casamentos de vinícius 

 clica para saber mais sobre suas mulheres

 [ supreenda-se com uma personagem de lobato no meio de tudo ]

quinta-feira, 21 de março de 2024

balancete - josé paulo paes - comentário

 


[ J P Paes - 1926-88 ]

      BALANCETE   
                                        José Paulo Paes 

   A esperança: flor
   seca mas (acaso
   ou precaução?) guardada
   entre as páginas de um livro.

   A incerteza: frio
   de faca cortando
   em porções cada vez menores
   a laranja dos dias.

   O amor: latejo
   de artéria entupida
   por onde o sangue se obstina
   em fluir.

   A morte: esquina
   ainda por virar
   quando já estava quase esquecido
   o gosto de virá-las.

          [in "prosas seguidas de odes mínimas", cia das letras]

balancete :  documento que mostra movimentações financeiras em um certo período, numa empresa; serve também para identificar prejuízo ou lucro

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numa gradação que indica fim de vida, "balancete" apresenta pequena lista de temas que são caros ao humano comum, como "esperança", "dúvida" (medo); "amor" e "morte".

aqui, cada tema é tratado de modo a expor o seu lado triste, estéril, num pessimismo digno de fim de século.
a flor entre páginas de livro dá falsa esperança de que ainda haveria vida por ali. agora, cortar laranjas em porções menores fornece ideia de um desespero, necessidade de guardar, de adiar o fim da fruta, adiar o fim da vida...
ao final, a morte seria esse virar de página, ou seja, uma passagem para outras esferas... interessante que, na primeira estrofe, a metáfora da esperança esteja num livro com flor seca dentro. ao final, nova metáfora envolvendo livro: virar página da vida. o fim.

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sexta-feira, 13 de outubro de 2023

somos todos passarinhos

 

                                 

fim de jogo entre santos e palmeiras. outubro, 2023. vitória do time da praia. na entrevista, o técnico derrotado abel ferreira disse: (...) fomos passarinhos na forma como sofremos os dois gols… já contra o boca, fomos passarinhos na forma como sofremos o gol.

metáfora instigante porque é raro, no contexto do futebol, uso de prosa poética. fomos passarinhos, disse abel. o que pode ser? foram leves demais? voaram ao invés de correr pelo campo de jogo? ficaram cantando enquanto as formigas do santos e boca júniors trabalhavam? pode ser tudo isso.

olho pela janela, a vida urbana fervendo: entregadores de comida, ônibus, barulho do cortador de grama, cães, muitos carros, muita gente ainda apressada. um eterno clássico, desafio nós-contra-eles. e eles estão ganhando.

olhem, acho que fomos todos passarinhos, alguma vez na vida. fomos passarinhos porque não combatemos a escravidão devidamente; fomos passarinhos quando elegemos políticos anti-democráticos; fomos passarinhos quando abandonamos às queimadas a vida da nossa natureza. seria bom que fôssemos passarinhos de verdade, espalhando semente pra viver, cantoria e poesia para o resto. obrigado, abel, pela poesia ativa.


                                                          siga-nos! @carneiro_liter

quinta-feira, 1 de junho de 2023

aos óculos - josé paulo paes - comentário

 


         AOS ÓCULOS   [ José Paulo Paes ]

    só fingem que põem
 
    o mundo ao alcance

    dos meus olhos míopes.

    já não vejo as coisas

    como são: vejo-as como querem

    que eu as veja.
 
    logo, são eles que vêem,

    não eu que, cônscio

    do logro, lhes sou grato

    por anteciparem em mim

    o Édipo curioso

    de suas próprias trevas.

    [in "prosas seguidas de odes mínimas", 1992]

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dos doze versos, pelo menos quatro com cinco sílabas poéticas, sugerindo, logo de início, um ritmo tradicional, a redondilha menor.
as lentes dos óculos mentem a realidade. as lentes podem ser essa representação de consumismo, como já se viu no poema "ao shopping center", no mesmo livro. as lentes são parte de um sistema social que dirige a pessoa, esse sistema faz com que ela perca noção de realidade e passe a se comportar de acordo com o que outros querem. a identidade do poeta fica em risco. o verso "são eles que vêem" confessa a presença desse sistema.
a citação a édipo refere-se ao final da tragédia grega, quando este fura os olhos, cegando a si mesmo, para não ver a realidade. logo, os óculos se apresentam como aquele filtro enganoso... talvez pior do que isso: aquilo que cega mesmo.
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  saber mais? veja-me!



sexta-feira, 25 de novembro de 2022

escolha de túmulo - josé paulo paes - comentário

 



                                                      [ j p paes - por osvalter ]


        
 ESCOLHA DE TÚMULO
                             José Paulo Paes

                               Mais bien je veus qu'un arbre
                             m'ombrage au lieu d'un marbre.  - Ronsard -

  Onde os cavalos do sono
  batem cascos matinais.

  Onde o mundo se entreabre
  em casa, pomar e galo.

  Onde ao espelho duplicam-se
  as anêmonas do pranto.

  Onde um lúcido menino
  propõe uma nova infância.

  Ali repousa o poeta.

  Ali um voo termina,
  outro voo se inicia.

     [in "prosas seguidas de odes mínimas", cia das letras]
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se você não sabe francês, a epígrafe de ronsard diz algo mais ou menos assim, tradução livre:
"só quero que uma árvore me faça sombra ao invés de um mármore".

poema com tema ligado à morte. a repetição "onde", no início de verso é conhecida como "anáfora", uma figura de linguagem.
o que temos, nese texto, é uma sequência de imagens ligadas ao fim da vida: "cavalos do sono", "pranto", "voo", "repousa" etc são uma maneira mais suave de descrever a passagem da vida para a morte, o que traz o nome de "eufemismo", outra figura de linguagem. 
vale lembrar que, pelo conjunto da obra de paes, podemos dizer que essa repetição de "onde" lembra uma reza, uma espécie de ladainha.
a figura do menino propondo nova história não deixa de ser um clichê que bem pode se ligar ao cristianismo e àquelas imagens de anjos, querubins e afins. contudo, a riqueza da proposta está no que o menino oferece: não se trata de outra vida, eternidades ou companhias divinas, mas sim uma outra infância. é inusitado. simbólico até o talo, faz crer que a infância é a melhor vida, porque livre, porque prestes a aprender tudo... é bem bonito. é literatura.

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quarta-feira, 9 de novembro de 2022

ao shopping center - josé paulo paes - comentário

 

                                                          [josé paulo paes 1926 - 98]

       AO SHOPPING CENTER
                   José Paulo Paes

    Pelos teus círculos

    Vagamos sem rumo

    Nós almas penadas

    Do mundo do consumo.

    Do elevador ao céu

    Pela escada ao inferno:

    Os extremos se tocam

    No castigo eterno.

    Cada loja é um novo prego em nossa cruz.

    Por mais que compremos

    Estamos sempre nus

    Nós que por teus círculos

    Vagamos sem perdão

    À espera (até quando?)

   Da Grande Liquidação.

 

     [in: "prosas seguidas de odes mínimas", cia das letras]
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criticando o consumismo, o eu lírico junta o espaço do shopping ao momento do julgamento final, à moda católica. o poeta afirma que "vagamos sem perdão", uma vez que o consumismo é símbolo de vaidade, ação tão condenada pelos católicos. olhem, gostar de si, querer agradar ao próprio ser é ruim para essa religião porque é a chance de que a pessoa seja mais dona de seus próprios atos e deixe de dar ouvidos a histórias de outros mundos.

aqui, o eu lírico não está criticando o catolicismo e suas leis punidoras, pelo contrário, condena os que frequentam shoppings centers e os trata como seres vazios. "cada loja é um prego" significa o erro de ser consumista, ou seja, ir ao shopping tira da pessoa a chance de ir à igreja. o poeta pune aquele(a) que compra.
o texto tem o caráter de uma "ode", ou seja, uma homenagem, na tradição clássica. no caso, uma grande ironia, como se lê ao final.
essas pessoas consumistas vazias esperam o grande perdão por serem o que são: consumidores. "grande liquidação", ao final, é t
rocadilho digno de aplauso. é instigante. é literatura.

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sexta-feira, 4 de novembro de 2022

canção - cecília meireles - comentário

 

     CANÇÃO

 Pus o meu sonho num navio
 e o navio em cima do mar;
 — depois, abri o mar com as mãos, 
 para meu sonho naufragar.

 Minhas mãos ainda estão molhadas
 do azul das ondas entreabertas,
 e a cor que escorre dos meus dedos
 colore as areias desertas.

 O vento vem vindo de longe,
 a noite se curva de frio;
 debaixo da água vai morrendo
 meu sonho, dentro de um navio...

 Chorarei quanto for preciso,
 para fazer com que o mar cresça,
 e o meu navio chegue ao fundo
 e o meu sonho desapareça.

 Depois, tudo estará perfeito:
 praia lisa, águas ordenadas,
 meus olhos secos como pedras
 e minhas duas mãos quebradas.

     Cecília Meireles [ Viagem, 1939 ]

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versos de oito sílabas poéticas, isso mesmo. octassílabos. ritmo regular com um par só de rimas por estrofe.
poema de caráter narativo, uma vez que há lista de ações e a voz de quem fala revela emoção; também de caráter lírico porque há ritmo regular e o apelo semântico desmedido presente no desfecho.
influenciada pelo simbolismo -- final do século 19 e inícios do 20 -- a poesia de cecília, aqui, expõe tristeza sem os exageros do romantismo. é de caráter depressivo, sim, o texto. lembra alguém que desiste de algo importante: o sonho. a bem da verdade, desistir de sonhos não é, necessariamente, algo ruim, mas aqui, é uma ação bem dolorosa, já que os olhos estão secos de tanto choro e mãos quebradas, ao final.
para ter certeza de que o sonho afundado está mesmo seguramente submerso, o eu lírico afirma que chorará muito: as lágrimas serão tantas que farão o mar crescer. haja rivotril. 


quinta-feira, 22 de setembro de 2022

encomenda - cecília meireles - comentário

 

           ENCOMENDA
                       Cecília Meireles [1901-64]

  Desejo uma fotografia
  como esta — o senhor vê? — como esta:
  em que para sempre me ria
  como um vestido de eterna festa.

  Como tenho a testa sombria,
  derrame luz na minha testa.
  Deixe esta ruga, que me empresta
  um certo ar de sabedoria.

  Não meta fundos de floresta
  nem de arbitrária fantasia...
  Não... Neste espaço que ainda resta,
  ponha uma cadeira vazia.
                       [ Vaga Música, 1942 ]

poema sobre passagem de tempo e a possibilidade de assumir a solidão. assumir ou constatar, simplesmente. eis aí uma doença que aflige dez entre dez pessoas sensíveis. sempre.
o eu do texto quer -- na fotografia --  imagem que seja alegre; quer uma foto como a que está mostrando ao fotógrafo: nela, há alegria.
com rimas de uma sonoridade ímpar, "encomenda" traz influência do simbolismo, à medida que o lirismo é a sua maior caracterítica, ou seja, a expressão em primeira pessoa, a exposição de emoção, aqui, sem exageros. pois se houvesse, seria romântico. a primeira estrofe beira a singeleza e o clichê. depois, vem o clima sombrio, a constatação de uma ausência. repare: versos de oito sílabas poéticas, octassílabos: raridade.
o eu lírico dispensa lugares comuns na fotografia, como cenários artificiais ou fantasia aleatória. o que se quer é imagem que expõe o invisível através da cadeira. sobra, ao final, a saudade, representada por essa cadeira vazia. pode ser a saudade de alguém distante ou -- como já se disse -- a constatação da solidão do próprio eu lírico. ia escrever "constatação da depressão", mas desisti. 

quarta-feira, 24 de agosto de 2022

papai noel às avessas - drummond

                                     

 [ ilustração de di cavalcanti para drummond, anos 1920 ]


drummond tem um poema despretensioso, desses que só funcionam quando a gente lê os outros do mesmo livro. enfm, chama-se "papai noel às avessas". nele, o leitor acompanha a entrada de um papai noel numa casa humilde e ele sai de lá carregando os brinquedos das crianças. 
o texto saiu no jornal, pela primeira vez em 1927. di cavalcanti gostou e fez desenho. pouco tempo depois, em 1930, o poema seria publicado em "alguma poesia".

"papai noel às avessas" ilustraria a vontade do poeta de expor mazelas sociais e situações do cotidiano de vidas urbanas. o homem que entrou na casa queria um tanto de alegria. queria os brinquedos. 
ame-se mais, dizem os animadores de neurônio alheio. goste-se. confie em si mesmo apenas... etc etc... 
esse papai noel larápio do texto realmente pensou mais em si. quis presentear-se. entrou pela casa e, mais do que algum relógio, roupas, dinheiro, ele levou brinquedos. 
seria uma criança tardia? um saltimbanco maligno? alguém deprimido querendo diversão? é o que acontece numa relação intensa: um fica com os prazeres do outro, não é assim? ficar com alegria de alguém é crime? papai noel às avessas não está aí pra ser símbolo do ladrãozinho. ele fez o óbvio. fez o que todo mundo crê que deveria fazer: pensar em si. mas... se quiserem chamar esse papai noel de simples ladrão, então tá.
não vejo graça nesse lance de simplesmente gostar-se mais e ponto, se o que a gente quer é o outro, se o que a gente quer é o gozo compartilhado.

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leia o poema todo:

Papai Noel entrou pela porta dos fundos
(no Brasil as chaminés não são praticáveis),
entrou cauteloso que nem marido depois da farra.
Tateando na escuridão torceu o comutador
e a eletricidade bateu nas coisas resignadas,
coisas que continuavam coisas no mistério do Natal.
Papai Noel explorou a cozinha com olhos espertos,
achou um queijo e comeu.

Depois tirou do bolso um cigarro que não quis acender.
Teve medo talvez de pegar fogo nas barbas postiças
(no Brasil os Papai-Noéis são todos de cara raspada)
e avançou pelo corredor branco de luar.
Aquele quarto é o das crianças
Papai entrou compenetrado.
Os meninos dormiam sonhando outros natais muito mais lindos
mas os sapatos deles estavam cheinhos de brinquedos
soldados mulheres elefantes navios
e um presidente de república de celulóide.
Papai Noel agachou-se e recolheu aquilo tudo
no interminável lenço vermelho de alcobaça.
Fez a trouxa e deu o nó, mas apertou tanto
que lá dentro mulheres elefantes soldados presidente brigavam
                                                                               [ por causa do aperto.

Os pequenos continuavam dormindo.
Longe um galo comunicou o nascimento de Cristo.
Papai Noel voltou de manso para a cozinha,
apagou a luz, saiu pela porta dos fundos.
Na horta, o luar de Natal abençoava os legumes.

C D Andrade - Alguma Poesia
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saiba mais:



terça-feira, 1 de fevereiro de 2022

nota social - carlos drummond

 


NOTA SOCIAL

O poeta chega na estação.
O poeta desembarca.
O poeta toma um auto.
O poeta vai para o hotel.
E enquanto ele faz isso
como qualquer homem da terra,
uma ovação o persegue
feito vaia.
Bandeirolas
abrem alas.
Bandas de música. Foguetes.
Discursos. Povo de chapéu de palha.
Máquinas fotográficas assestadas.
Automóveis imóveis.
Bravos…
O poeta está melancólico.
Numa árvore do passeio público
(melhoramento da atual administração)
árvore gorda, prisioneira
de anúncios coloridos,
árvore banal, árvore que ninguém vê
canta uma cigarra.
Canta uma cigarra que ninguém ouve
um hino que ninguém aplaude.
Canta, no sol danado.
O poeta entra no elevador
o poeta sobe
o poeta fecha-se no quarto.
O poeta está melancólico.

    [ drummond, alguma poesia, 1930 ]
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* "assestadas" - - apontadas
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"nota social" faz referência a uma parte do jornal dedicada a personalidades tidas como importantes, na cidade, algo muito comum no século 20

aqui, no poema, o eu lírico expõe que não há espaço para suavidades. 
a árvore e a cigarra são desprezadas pelo progresso (anúncios). no cotidiano, há os automóveis, barulho de câmeras fotográficas. o poeta está melancólico. mesmo a agitação das pessoas com sua chegada parece vaia, ou seja, quem exercita o simples, a subjetividade, a poesia, não teria espaço.
o mundo está agitado. lembre-se: a obra foi feita no final dos anos 1920 e publicada em 1930. a melancolia do poeta se deve às crises, tanto na política brasileira, como nas consequências do "crack" da bolsa de nova iorque, em 1929.

quarta-feira, 15 de setembro de 2021

casamento do céu e do inferno - drummond

 


CASAMENTO DO CÉU E DO INFERNO

No azul do céu de metileno
a lua irônica
diurética
é uma gravura de sala de jantar.
Anjos da guarda em expedição noturna
velam sonos púberes
espantando mosquitos
de cortinados e grinaldas.

Pela escada em espiral
diz-que tem virgens tresmalhadas,
incorporadas à Via Láctea, vagalumeando…

Por uma frincha
o diabo espreita com o olho torto.
Diabo tem uma luneta
que varre léguas de sete léguas
e tem o ouvido fino
que nem violino.

São Pedro dorme
e o relógio do céu ronca mecânico.
Diabo espreita por uma frincha.
Lá embaixo
suspiram bocas machucadas.
Suspiram rezas? 
Suspiram manso, de amor.
E os corpos enrolados
ficam mais enrolados ainda
e a carne penetra na carne.
Que a vontade de Deus se cumpra!
Tirante Laura e talvez Beatriz,
o resto vai para o inferno.
    [C. Drummond. Alguma poesia, 1930 ]

texto de caráter descritivo e narrativo, quase didático, opondo os conceitos de céu e inferno, ou seja, o mundo da salvação e o da perdição.
enquanto são pedro dorme e o relógio ronca de tédio, no porão -- parte baixa da casa -- corpos enrolados se amam.
essa "parte baixa" é alegoria do inferno e seus lugares-comuns: subsolo, escuridão, lugar de sofrimento etc.

ironicamente, o poeta pergunta se suspiram rezas. nada disso: suspiram de gozo carnal. é a vontade deles. vontade de deus. logo, esse tal inferno parece ser lugar prazeroso.
laura e beatriz são figuras divinizadas, no livro "a divina comédia", de dante alighieri.
vale sempre a pena lembrar os textos de william blake, inglês, 1894. ele publicou livro com este nome: "casamento do céu e do inferno".  traz visões por vezes pagãs das vontades humanas. é inspirador.



sexta-feira, 10 de setembro de 2021

itabira - drummond e o buraco do cauê

 

      ITABIRA

     Carlos Drummond de Andrade

 Cada um de nós tem seu pedaço no pico do Cauê.
 Na cidade toda de ferro
 as ferraduras batem como sinos.
 Os meninos seguem para a escola.
 Os homens olham para o chão.
 Os ingleses compram a mina.
 Só, na porta da venda, Tutu Caramujo cisma na derrota incomparável.

           [ Alguma poesia, 1930 ]

parece premonição, este poema publicado em 1930. por volta da década de 1940, o pico do cauê -- mais de mil metros de altitude -- foi destruído pela companhia vale do rio doce, para extração de minério, em itabira. 

o poema -- versos brancos e livres -- contrasta as figuras da cidade à dos ingleses e reafirma a vitória do ferro sobre a simplicidade natural.
texto com caráter de crônica, revela a dor da cidade personificada em tutu, sabedor da derrota. qual derrota?... a da natureza.
"ferraduras batem como sinos" é verso dos mais emblemáticos deste livro. minério, burrice, natureza e essa pobreza que é machucada...

lembra bem o que a mesma "vale" causou em brumadinho, no século 21. que fase de nossa natureza.

saiba mais:


sábado, 14 de agosto de 2021

o conde dom henrique - fernando pessoa - os castelos

 

                               
          jangada de pedra, jerônimos, lisboa - portugal
                                  [ foto c.h. carneiro ]

 
   O CONDE D. HENRIQUE

  Todo começo é involuntário.

  Deus é o agente,

  O herói a si assiste, vário

  E inconsciente.

  À espada em tuas mãos achada

  Teu olhar desce.

  «Que farei eu com esta espada?»

  Ergueste-a, e fez-se.


    [ in: Mensagem, 1934, Fernando Pessoa ]


  - notas -

conde d. henrique (1057-1114) - nobre militar, alistado no exército de afonso VI

 (leão e castela) para combater mouros; casou com tareja, filha do rei e tornou-se

 governador do condado portucalense, em 1093

o condado  seria o núcleo do país independente, sob comando do filho de henrique e

 tareja: afonso henriques

. . . . . . . . .  .  .  .  .  .  .  .   .   .   .    .


- henrique parece agir sob comando de uma energia maior: "fez-se", é

o que se lê no fim, assim como "deus é o agente", verso 2

- o conde é o embrião do país, como se vê na história e o poema denota

 que, sem saber o que fazer com o poder (espada), apenas a ergueu e isso

 foi o bastante

- a razão pela qual fatos acontecem pode escapar do entendimento: isso

 é uma tônica no livro "mensagem" como um todo

-  homem seria instrumento de algo maior