dos doze versos, pelo menos quatro com cinco sílabas poéticas, sugerindo, logo de início, um ritmo tradicional, a redondilha menor.
as lentes dos óculos mentem a realidade. as lentes podem ser essa representação de consumismo, como já se viu no poema "ao shopping center", no mesmo livro. as lentes são parte de um sistema social que dirige a pessoa, faz com que ela perca noção de realidade e passe a se comportar de acordo com o que outros querem. a identidade do poeta fica em risco. o verso "são eles que vêem" confessa a presença desse sistema. a citação a édipo refere-se ao final da tragédia grega, quando este fura os olhos, cegando a si mesmo, para não ver a realidade. logo, os óculos se apresentam como aquele filtro enganoso... talvez pior do que isso: aquilo que cega mesmo.
Mais bien je veus qu'un arbre m'ombrage au lieu d'un marbre. - Ronsard -
Onde os cavalos do sono batem cascos matinais.
Onde o mundo se entreabre em casa, pomar e galo.
Onde ao espelho duplicam-se as anêmonas do pranto.
Onde um lúcido menino propõe uma nova infância.
Ali repousa o poeta.
Ali um vôo termina, outro vôo se inicia.
[in "prosas seguidas de odes mínimas", cia das letras] . . . . . . . . . . . . . . . . . .
se você não sabe francês, a epígrafe de ronsard diz algo mais ou menos assim, em tradução livre: "só quero que uma árvore me faça sombra ao invés de um mármore".
poema com tema ligado à morte. a repetição "onde", no início de verso é conhecida como "anáfora", uma figura de linguagem. o que temos, nese texto, é uma sequência de imagens ligadas ao fim da vida: "cavalos do sono", "pranto", "voo", "repousa" etc são uma maneira mais suave de descrever a passagem da vida para a morte, o que traz o nome de "eufemismo", outra figura de linguagem. vale lembrar que, pelo conjunto da obra de paes, podemos dizer que essa repetição de "onde" lembra uma reza, uma espécie de ladainha. a figura do menino propondo nova história não deixa de ser um clichê que bem pode se ligar ao cristianismo e àquelas imagens de anjos, querubins e afins. contudo, a riqueza da proposta está no que o menino oferece: não se trata de outra vida, eternidades ou companhias divinas, mas sim uma outra infância. é inusitado. simbólico até o talo, faz crer que a infância é a melhor vida, porque livre, porque prestes a aprender tudo... é bem bonito. é literatura.
Não vi terras de passagem Não vi glórias nem escombros.
Guardei no fundo da mala um raminho de alecrim.
Apaguei a luz da sala que ainda brilhava por mim.
Fechei a porta da rua a chave joguei no mar.
Andei tanto nesta rua que já não sei mais voltar.
[in "prosas seguidas de odes mínimas", cia das letras] . . . . . . . . . . . . . . . . . .
poema paródia do adocidado "canção do exílio", gonçalves dias, 1843. aqui, século 20, ao contrário das boas expectativas no citado poema romântico, temos dose de pessimismo. texto de caráter narrativo, revela que o poeta não viu, no passado, nem "glória" nem "escombro", ou seja, nada de ruim ou bom. no fundo da mala, ou seja, dentro de si, vai um ramo de alecrim. na tradição europeia, era chamado de "rosmarino" -- flor do mar, para os romanos. aqui pelo país, é costume crer que o alecrim afasta inveja ou pesadelo. veja, mesmo não enxergando nada de ruim, no passado, melhor prevenir e botar alecrim na mala. é o medo. insegurança. o eu lírico fecha a casa, joga a chave no mar, ou seja, busca distanciar-se de suas origens, de seus possíveis problemas, quer mudar de vida. a expectativa sobre o que esse eu lírico faz depois de tudo é quebrada, porque, no final, se descobre que talvez ele tenha se arrependido e só não volta porque se perdeu. outra leitura possível para esse desfecho você mesmo pode criar. é divertido. é literatura.