aparição - sophia de mello bryener andresen - comentário
Aparição
Devagar devagar um homem morre
Escura no jardim a noite se abre
A noite com miríades de estrelas
Cintilantes límpidas sem mácula
Veloz veloz o sangue foge
Já não ouve cantar o moribundo
Sua interior exaltação antiga
Uma ferida no seu flanco o mata
Somente em sua frente vê paredes
Paredes onde o branco se retrata
Seus olhos devagar ficam de vidro
Uma ferida no seu flanco o mata
Já não tem esplendor nem tem beleza
Já não é semelhante ao sol e à lua
Seu corpo já não lembra uma coluna
É feito de suor o seu vestido
A sua face é dor e morte crua
E devagar devagar o rosto surge
O rosto onde outro rosto se retrata
O rosto desde sempre pressentido
Por aquele que ao viver o mata
Seus traços seu perfil mostra
A morte como um escultor
Os traços e o perfil
Da semelhança interior.
[ O Cristo cigano, Sophia de M B Andresen, 1961 ]
poema relata a morte de cristo, com um golpe no flanco, como descreve o novo testamento, quando da crucificação. contudo, o poema traz o nome "aparição". ou seja, alguma ressurreição.
agora, se liga nessa história: sophia breyner encontrou-se com joão cabral de melo neto, em sevilha, espanha, onde vivia o brasileiro que era também diplomata. lá, ela ouviu a lenda de que o escultor espanhol francisco gijón, no final do século 17, recebera uma encomenda de um cristo em agonia. para este fim, o tal artista buscou uma cena que pudesse ver alguém morrendo para conseguir inspiração e fazer seu trabalho. para isso, presenciou o esfaqueamento de um cigano e, assim, obteve material visual que precisava. depois de pronta a peça de madeira, muita gente reconheceu o cigano -- apelidado "cachorro" -- e passaram então a chamar a capela onde a escultura está de "capela do cachorro". a obra é o "cristo de la expiración" ou "el cachorro de triana".
na sequência, ele ressurge, já sem beleza nem esplendor. o rosto divino surge, porque é o rosto esperado pelo escultor do início do livro. quanto mais vivia o anterior, humano, mais este que aparece ficaria morto. ou seja, era necessária a morte do primeiro para que o segundo rosto viesse, feito de dor, sangue, suor, que é o rosto mais conhecido pelas pessoas, os ditos fiéis e os nem tanto. quem esculpiu o novo rosto "de morte crua" foi a própria morte. ela, que já morava no primeiro cristo todo o tempo.
a influência no estilo, diz a própria poetisa, é de joão cabral -- citado nominalmente, no primeiro poema do livro, "a palavra faca". porém, a densidade é bem fernando pessoa, convenhamos.
logo, de quem se fala em "aparição"? quem aparece?
sim, é a morte. nada mais.
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