sexta-feira, 28 de março de 2025

memórias de martha - julia lopes de almeida

 


memórias de martha  -  julia lopes - romance - 1888
narração em 1a pessoa  -  martha

cenário: rio de janeiro

martha narra sua história de infância e juventude, até 24 anos de idade, quando se casa

quando pai falece -- suicídio --, ela e mãe vão morar num cortiço, em são cristóvão. a mãe lava e passa roupas para outras famílias

martha sofre com a miséria, tem vergonha da pobreza

martha sonha ser professora e consegue, com auxílio de d. aninha -- martha é dedicada aos estudos

a ascensão social de martha não irá acontecer pelo casamento, herança ou o que quer que seja vindo de outras pessoas, mas sim da educação, eis a revolução deste livro que, como se viu, é do século 19, escrito por uma mulher

julia lopes, inclusive, foi barrada na academia brasileira de letras que ela mesma ajudou a criar! mas isto é outra conversa. voltemos ao livro

martha se apaixona pelo primo de d. aninha, luiz, mas nada se desenvolve, para frustração da narradora (martha)

o ambiente do cortiço, ao contrário da tendência das literaturas da época, não faz de martha uma jovem que se perdesse imoralidade ou noutra mazela social: ela cresce na profissão e consegue sair de lá, levando sua mãe junto

miranda, um senhor da vizinhança, cerca de 40 anos, pede a mão da moça à mãe. eles irão se casar. mãe de martha trabalhava para miranda havia dez anos. a jovem acaba aceitando, pois acredita que o csasamento seria vingança para os ultrajes que recebera durante a vida, ou seja, o universo em torno de si fez com que ela sempre acreditasse ser feia, inabilidosa e não desejável. a chegada de miranda -- figura por quem ela não nutria amores -- trouxe uma realidade contrária àquela em que insistia viver. 
oito dias de pois do casamento, a mãe morre. a narrativa termina.

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segunda-feira, 24 de março de 2025

25 de março - narcisa amália

 



   VINTE E CINCO DE MARÇO

 

A noite sepulcral dos tempos idos

Plácida avulta a merencória esfinge,

Esplêndido fanal que esclarecera

       A crente multidão!


Monumento do verbo grandioso

Deste povo titã, débil ainda...

Centelha sideral aque fecundara

         A seiva da nação! 


Lacerado o sendálio tenebroso

Que nos velava os livres horizontes.

Entoa o continente americano

      Um hino colossal;


Mais vivida no peito a fé rutila,

Mais nobres s'erguem dos heróis os bustos

Cingidos pela flama deslumbrante

     Da glória perenal.


Mas tu projetas o negror no espaço

Que sobre nós desata-se em sudário!

Mas teu hálito extingue a luz benéfica

      Que acendera o Senhor!


Maldição! Maldição! A liberdade

Vê de lodo o seu manto salpicado...

Do vulcão popular a ígnea lava

         Desmaia sem calor.

Raiaste como o símbolo

Do traidor Antíteo, mentindo ao orbe,

E os louros virgens da nação sorveste

         Como hidra voraz!


Roubaste ao povo a palma do triunfo.

Recompuseste a algema ao pó lançada,

Emoldaste no bronze a estátua fria

        Da mentira loquaz!


Das espaldas robustas da montanha

A pedra derrocada, abate selvas:

A avalanche vacila lá nos Alpes..

      Convulsam terra e mar!


Resvalaste, padrão de cobardia

Pelos áureos degraus do sólio augusto.

E a santa aspiração, e os sonhos grandes,

      Esmagaste ao tombar!..


Após a luz.. o caos confuso, intérmino!

Após o hino festival de um povo...

O lúgubre silêncio do sepulcro

    Sem uma queixa, ou voz!

Lançaste a pátria em báratros profundos,

Ferida pela mão da tirania,

E apenas um lampejo de civismo

    Deixaste ao crime atroz!

Onde estavam, ó pátria, os teus Andradas

Que sustinham-te aos ombros gigantescos?

Onde o tríplice brado altipotente

      Do peito popular?

Gemem sem luz em cárceres medonhos,

Seguem do exílio a pavorosa senda

Rorando com seu pranto piedoso

     De teu solo o altar!

 

      [ narcisa amália, nebulosas, 1872 ]


nota da autora:  as duas primeiras estrofes desta poesia aludem ao projeto de constituição elaborado pelos membros da constituinte de 1824, no qual todos os grande princípios da liberdade eram solenemente reconhecidos.

epígrafe: trecho do poema "hino à liberdade", de celso tertuliano da cunha magalhães (1849-1879), poeta, pioneiro do estudo do folclore no brasil. 

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    notas_

 merencória – melancólica, triste


 sendalio  –  termo raro: pode significar o passado ou a censura


 rutila  –  brilha, cintila


 báratro – abismo; inferno


 antíteo  –  qualifica um traidor; contrasta com ideias de liberdade


 rorando  –  rorejando -  orvalhando, gotejando


 andradas – referência à família de josé bonifácio e seus dois irmãos antônio carlos e martim francisco: especialmente bonifácio é considerado patriarca da independência

 

 

como se vê, o poema trata da frustação do eu lírico diante do que foi feito dos ideais políticos estabelecidos na constituinte de 1824, ou seja, o manto da constituição -- que melhoraria a vida do povo -- foi salpicado de lama, “ferida pela mão da tirania”. 

atenção para o verso: "roubaste ao povo a palma do triunfo", ou seja, a liderança política que se seguiu à constituição de 1824 não cumpriu o que estava no papel. aliás, 25 de março é data em que foi outorgada a constituição, em 1824.

a linguagem repleta de adjetivos e metáforas mantém o texto no estilo romântico, porém, é uma crítica às políticas sociais em geral. 

país não seguiu os caminhos que a poetisa acreditava que seriam os melhores: houve traição, este é o teor do poema “25 de março”. 

claramente, há proximidade com o que fez castro alves quando tratou da escravatura com intenção crítica.


           . . . . . .  .  .   .   .    .

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terça-feira, 18 de março de 2025

a solidão - sophia de mello breyner - comentário

                                         
                        [ cristo de la expiración - francisco gijón  séc 17 ]


          6.  A solidão


   A noite abre os seus ângulos de lua

   E em todas as paredes te procuro

   A noite ergue as suas esquinas azuis

   E em todas as esquinas te procuro

   A noite abre as suas praças solitárias

   E em todas as solidões eu te procuro

   Ao longo do rio a noite acende as suas luzes

   Roxas verdes azuis.

   Eu te procuro.

 

   [ O cristo cigano, 1961, Sophia de M B Andresen ]

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este é o sexto poema de "o cristo cigano".  a presença do cenário noturno intensifica a ideia de solidão. 

vale conhcer: sophia breyner encontrou-se com joão cabral de melo neto, em sevilha, espanha, onde vivia o brasileiro que era também diplomata. lá, ela ouviu a lenda de que o escultor espanhol francisco gijón, década de 1680, recebera uma encomenda de uma estátua de um cristo em agonia. para este fim, o tal artista buscou uma cena em que pudesse ver alguém morrendo para conseguir imagem exata e fazer seu trabalho. para isso, presenciou de verdade o esfaqueamento de um cigano e, assim, obteve material visual que precisava. depois de pronta a peça de madeira (foto acima), muita gente reconheceu o cigano -- apelidado  "cachorro" -- no rosto da estátua e passaram então a chamar a capela onde a escultura está de "capela do cachorro". a obra é o "cristo de la expiración". 

isto posto, voltemos ao poema 6.
a voz do texto é do escultor -- que aparece no poema 1. pois bem, este escultor continua procurando um cristo em agonia, querendo capt
urar sua essência na matéria bruta, buscando-o nos recantos da cidade e fora dela. em algum momento encontrará.

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sexta-feira, 14 de março de 2025

uma experiência privada - chimamanda

 




"uma experiência privada", conto do livro "no seu pescoço", de chimamanda adichie.

a história se passa em kano, nigéria, durante onda de violência entre muçulmanos e cristãos.
chika é estudante de medicina de férias na cidade. ela é pega de surpresa pela violência enquanto está no mercado com sua irmã, nnedi. na confusão, ambas se separam. chika -- da etnia igbo -- se refugia numa pequena loja junto com uma mulher hausa muçulmana. é esta mulher hausa que pede para chika vir com ela para a pequena loja abandonada

  . . . . .  .  .   .

(...) Chika se pergunta se a mulher a está observando também, se sabe, por sua pele clara e pelo rosário de dedo feito de prata que sua mãe insiste em obrigá-la a usar, que é igbo e cristã. Mais tarde, Chika descobrirá que, quando ela e a mulher estavam conversando, muçulmanos hausas estavam atacando cristãos igbos a machadadas e apedrejando-os. Mas, naquele momento, ela diz:
“Obrigada por me chamar. Tudo aconteceu tão rápido, todo mundo correu e de repente eu estava sozinha, sem saber o que fazer. Obrigada”.
“Aqui lugar seguro”, diz a mulher, (...)
“Eles não entra em loja pequena-pequena, só loja grande-grande e no mercado.”
“Sim”, diz Chika. 
(...)
“Meus peitos arde igual pimenta” diz a mulher. 
 “O quê?”
 “Meus peitos arde igual pimenta.”
Antes que Chika consiga engolir o nó de surpresa em sua garganta e dizer qualquer coisa, a mulher sobe a blusa e abre o fecho frontal de um velho sutiã azul. (...)
 “Arde-arde igual pimenta”, diz, colocando as mãos em concha sob eles e se inclinando na direção dela, como se fizesse uma oferenda. Chika se move. (...)
Chika os examina com cuidado, estica a mão e os apalpa. “Você teve neném?”, pergunta. 
 “Tive. Um ano.”
“Seus mamilos estão ressecados, mas não parecem infectados. Depois de amamentar o neném, tem que usar um hidratante. E, quando estiver amamentando, tem que ter certeza de que o mamilo e essa outra parte aqui, a aréola, estão dentro da boca do neném.”
 A mulher olha longamente para Chika.
“Primeira vez isso. Eu ter cinco filhos.”

    . . . . .  .  .   .

apesar das diferenças culturais e sociais – chika é  estudante de medicina de classe média, enquanto a mulher é uma feirante humilde –, as duas desenvolvem conexão íntima e solidária ao longo das horas que passam escondidas. chika até auxilia a mulher que sente dores no seio: ela examina os seios da mulher e sugere hidrante , pois estavam feridos pela amamentação. 

    . . . . .  .   .   .   .

Mais tarde, ela vai ver as carcaças de carros queimados, com buracos com bordas denteadas no lugar das janelas e para-brisas, e imaginará esses carros espalhados pela cidade como fogueiras de piquenique, testemunhas silenciosas de tanta coisa. Vai descobrir que tudo aconteceu no estacionamento, quando um homem passou de carro sobre um exemplar do Alcorão que estava no acostamento, um homem que, por acaso, era igbo e cristão. Os homens que estavam ali por perto, homens que passavam o dia inteiro jogando damas, homens que, por acaso, eram muçulmanos, o arrancaram da picape, cortaram sua cabeça com um golpe de machadinha e o levaram até o mercado, pedindo que outros se juntassem a eles, pois o infiel tinha profanado o livro sagrado. 

  . . . . . .  .  .   .   .

chika, quando finalmente sai do esconderijo, depara-se com um cadáver queimado, um símbolo da violência desumana que assola o país. aterrorizada, ela retorna à loja e recebe mais uma demonstração de gentileza da mulher, que limpa seu ferimento na perna.

demonstração de que as diferenças históricas podem ser superadas por atos de gentilieza, empatia e união.

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sábado, 8 de março de 2025

trevas - sophia de mello bryener - comentário

 

                                              [ francisco gijón, cristo em agonia, séc 17 ]

            7.  Trevas

       O que foi antigamente manhã limpa
       Sereno amor das coisas e da vida
       É hoje busca desesperada busca
       De um corpo cuja face me é oculta.


                [ O cristo cigano, 1961, Sophia de M B Andresen ]
   

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este é o sétimo poema de "o cristo cigano".  

aqui, pode ser a voz do escultor -- que aparece no poema 1 -- que está buscando uma imagem de um cristo em agonia para construir sua estátua. 

agora, se liga nessa história: sophia breyner encontrou-se com joão cabral de melo neto, em sevilha, espanha, onde vivia o brasileiro que era também diplomata. lá, ela ouviu a lenda de que o escultor espanhol francisco gijón, final do século 17, recebera uma encomenda de uma estátua de um cristo em agonia. para este fim, o tal artista buscou uma cena em que pudesse ver alguém morrendo para conseguir inspiração e fazer seu trabalho. para isso, presenciou o esfaqueamento de um cigano e, assim, obteve material visual que precisava. depois de pronta a peça de madeira (foto acima), muita gente reconheceu o cigano -- apelidado  "cachorro" -- e passaram então a chamar a capela onde a escultura está de "capela do cachorro". a obra é o "cristo de la expiración" ou "el cachorro de triana". 

voltando ao poema 7. parece uma legenda desta história que você leu no parágrafo anterior. há uma inquietação muito grande e, por isso, o que se seguirá é o esfaqueamento do cigano, como se vê nos últimos poemas do livro.

  . . . .  .   .

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quarta-feira, 5 de março de 2025

desengano - narcisa amália

 


      DESENGANO   _narcisa amália_

 

Quando resvala a tarde na alfombra do poente

E o manto do crepúsculo se estende molemente,

Na hora dos mistérios, dos gozos divinais

Despedaçam-me o peito martírios infernais

E sinto que, seguindo uma ilusão perdida

Me arqueja, treme e expira a lâmpada da vida

Feriu-me os olhos tímidos o brilho da esperança

A luz do amor crestou-me o riso da criança:

E quando procurei - sedenta - uma ventura,

Aberta via a fauce voraz da sepultura!...

Dilacerou-me o seio, matou-me a crença bela,

O tufão mirrador de hórrida procela!

Então pálida e triste, alcei a fronte altiva

Onde se estampa a dor tenaz que me cativa:;

Sorvi na taça amarga o fel do sofrimento.

E a voz queixosa ergui num último lamento:

Era o cantar do cisne, o brado da agonia...

E a multidão passou soberba, muda, frial

Desprezo as pompas loucas, desprezo os esplendores,

Trilhar quero um caminho orlado só de dores:

E além, nas solidões, à sombra dos palmares,

Ao derivar da linfa por entre os nenúfares,

Quero ver palpitar, como em meu crânio a ideia.

O inseto friorento na lânguida ninfeia!

Ao despertar festivo da alegre natureza,

Quero colher as clícias que brincam na devesa:

Sentir os raios ígneos da luz do sol de maio

Reanimar-me a vida que foge n'um desmaio;

Pousar um longo beijo nas rubras maravilhas

E contemplar do céu as vaporosas ilhas.

E quando o ardor latente que cresta a minha fronte

Ceder à neve algente que touca o negro monte;

Quando a etérea asa da brisa fugitiva

Trouxer-me os castos trenos da terna patativa,

Elevarei meus carmes ao Ser que criou tudo,

E dormirei sorrindo n'um leito ignoto e mudo.

 

                [ narcisa amália, nebulosas, 1872 ]

 

  notas_

alfombra  -  tapete macio; certa extensão de relva

fauce  -  parte da garganta próximo à laringe; abertura

crestou  -  tostou; queimou

devesa  -  mata ou arvoredo

patativa -  referência a uma ave ou a um poeta

treno  -   canto fúnenre
carmes  -  cantos ou poemas

algente  -  gélido; muito frio


o texto apresenta uma angústia causada por uma "ilusão perdida" (v. 5). a solução para essa dor ("fel do sofrimento") é a contemplação da obra do criador, ou seja, o universo do deus católico. é um desejo de comunhão com a natureza e, consequentemente, união com deus. de repente ajuda. 

o desfecho marca este contraste entre martírios infernais e a busca de paz na hamonia com a natureza: no último verso o eu lírico sorri, talvez expondo o fim da vida finalmente em paz, ou seja, o último verso pode ser um eufemismo da morte. seria uma espécie de resignação diante de uma frustração.
gente, como assim? 
precisa aceitar todas as dores sempre?ficou tudo bem, no fim?... 

quem desdenha quer comprar, diz lá um ditado. mas é o romantismo.

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segunda-feira, 3 de março de 2025

em nome do cinema e do país: ainda estamos aqui


"Em nome do cinema brasileiro, é uma honra tão grande receber isso de um grupo tão extraordinário. Isso vai para uma mulher que, depois de uma perda tão grande no regime tão autoritário, decidiu não se dobrar e resistir... Esse prêmio vai para ela: o nome dela é Eunice Paiva. E também vai para as mulheres extraordinárias que deram vida a ela. Fernanda Torres e Fernanda Montenegro" 

[W Salles, março 2025, diretor de Ainda estou aqui]

 veja o que mais disse w salles - clica aqui

sim, é o filme de salles sobre o assassinato e tortura de rubens paiva (1971) -- pela ditadura militar -- que venceu mais uma premiação: oscar de melhor filme estrangeiro, 2025, nos estados unidos. o prêmio acadêmico e o reconhecimento público são a unanimidade que todo artista quer. poucos conseguem. elis regina, tom jobim, clarice lispector, fernanda montenegro, milton nascimento, guimarães rosa, antônio lisboa (aleijadinho), carolina de jesus e mais dois ou três. e agora, "ainda estou aqui" com a impagável fernanda torres interpretando eunice paiva, viúva de rubens. 

o filme é um libelo contra censura, tanto aquela dos 21 anos de ditadura (1964-85), como a sofrida entre 2018 e 2022: época de tentativa de desmonte de nossa arte. o filme é um grito de justiça, apelo à memória e valorização da história de resistência por que passaram e passam brasileiros em geral, ante a ambição e o autoritarismo da casa grande, desde cabral. desde cabral estamos nos defendendo. há brasileiros e brasileiras que, por dilemas acadêmcos (caráter), reproduzem discurso de ódio contra nossa tradição cultural. este filme é um levante contra a ignorância. é um pedido para que continuemos estudando para não repetir atrocidades de passados distantes e não tão distantes. parabéns, salles, marcelo paiva, selton, fernanda, fernanda-mãe e a todos os que continuam se emocionando com arte que impacta e acolhe.



 obrigado!




sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025

rupestre moderno

 

                  [ rupestre moderno - versão engraçada feita por i. a. - fev 2025 ]

já fui um velho livro esquecido numa biblioteca subterrânea. ninguém sabia quem me escrevera, nem por que me haviam trancado ali. quem me folheou dizia que as páginas mudavam a cada leitura. o texto se embaralhava, era assombroso. às vezes, eu era um romance trágico; em outras, um tratado filosófico. houve quem jurasse ter encontrado fórmulas matemáticas nunca vistas antes, nas minhas páginas, enquanto outros diziam que eu contava segredos de borboletas extintas. vai vendo. todos que leram, morreram. se bem que é normal humanos morrerem.  até aí, as coisas.

por séculos, permaneci intocado, até que uma criança  -- chata, com certeza -- desobedecendo às placas de "cuidado" e "sopa de letrinhas fervendo", acabou me encontrando. a tal criança remelenta abriu minhas páginas e, pela primeira vez, eu soube o que era ter alguém que me lesse com curiosidade. e sem medo. será? 
a criança tinha uma camiseta azul e dourada, parecia uma caixa de cigarro vagabundo do século 20. uma testa curta. lia e ria sem abrir a boca. foi por pouco tempo. então, a criança foi diminuindo de tamanho, derretendo e se desfez junto com as remelas do nariz, saiu bamboelando pelo ladrilho como pudim fora do ponto, indo para o ralo cuja grade era o formato de um trevo de quatro folhas. que pena.  talvez nem criança fosse e sim uma aparição, um pesadelo, já que livros também sonham.

enfim, a biblioteca velhusca percebeu a movimentação e, mesmo depois da tal criança ter virado uma gosma geleca, estantes começaram a se mexer, os corredores foram rangendo e as prateleiras se moveram para tentar me esconder novamente.
antes que elas me engolissem, fiz o que nunca havia feito antes: deixei cair uma página solta, a primeira página, pedaço de mim. como mensagem na garrafa. 

no primeiro capítulo, dá pra ler o início: "já fui um velho livro esquecido..."

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 veja o que mais escrevi e publiquei na aba "meus livros", alto da página

terça-feira, 25 de fevereiro de 2025

a visão das plantas - djaimilia de almeida

 


romance - djaimilia almeida - angola, 2019

cenário é portugal  --  século 19, predominantemente

enredo base: celestino é um pirata idoso retornando a sua casa numa vila, na rua dos choupos. local estava abandonado e a casa vai sendo recuperada aos poucos, principalmente o jardim, com cravos, roseira, cameleira e outras plantas

o início é assim:

Noite abençoada. Acordou em casa, restaurado, após uma vida cheia. Mas a casa tinha mudado. Com as portadas trancadas, a mobília coberta com lençóis, a toalha manchada de vinho sobre a mesa, a arca da roupa fechada a um canto, os reposteiros de veludo negro, esgarçados pela traça, tudo era outro e, ainda, o mesmo. Na penumbra, o volume dos móveis insinuava fantasmas. O pó, tornado um ser, animava o espaço, iluminado pela claridade através das frestas das janelas.
(...)

segundo a narração -- 3a pessoa onisciente -- as plantas não davam a mínima importância às intenções e ações carinhosas, ali no jardim.

a comunidade da pequena cidade fica com receio quando da chegada de celestino, mesmo idoso, pois era era um reconhecido pirata: traficava escravizados, tinha matado gente, era temido.

há um jogo entre sonho e realidade, em que os pensamentos do capitão se misturam a devaneios e lembranças distorcidas. ao final, o delírio com a velha negra dentro de sua casa e que o acompaha pelas margens do ribeiro reforça essa ação do tempo sobre o raciocínio de celestino, trazendo à tona o delírio. 

um dos instantes de delírio do capitão:
A velha negra não aparecia há muito, mas a despensa ainda vivia durante a noite. Celestino despertou com o ruído de estalidos nas garrafas. Arrastou-se, seminu, entre as sombras. Ninguém o esperava, mas mal podia com o barulho vindo do interior das paredes. O silêncio e o que se seguiu a ele: o abrir do porão, o monte de cadáveres sufocados — ainda agora gente e já alimento de larvas —, o jogar dos corpos ao mar, um a um, sem direito a enterro.

aqui, a imagem do passado, quando celestino e parte da tripulação jogam sacos de cal no porão do navio sufocand e natando negros que fariam uma rebelião. essa oscilação de tempos confere à obra um caráter fragmentado, reforçando ideia de um homem à deriva em sua própria mente. 
com o tempo, as pessoas que demonizaram o retorno do capitão à vila vão morrendo... e as histórias antigas de celestino se tornam lendas e ele chega a ser visto, já bem próximo à morte, como uma espécie de herói. 

trecho final:

Os rumores sobre o seu passado feroz eram já cantigas de pescadores quando, numa noite de  inverno, acabou os seus dias, sem uma dúvida na consciência tranquila. Trazido pelo médico, padre Alfredo veio benzer o corpo na manhã seguinte. O defunto estava lívido e sereno. A sua cor e as rugas confundiam-se com o lençol amarrotado. À saída de casa, a visão das plantas pareceu-lhe uma aleluia pela passagem da alma do capitão. As rosas, os cravos, os abetos, a ameixoeira ainda não sabiam que o seu amigo tinha morrido. Alfredo contemplou o raio de luz que, iluminando as folhas, reflectiu no orvalho sobre as flores, os frutos, os espinhos. Meu pequeno pirata”, gracejou entredentes. As palavras escondiam cobiça. Nas suas mãos pias, todas as plantas morriam.        [ fim ]

a narrativa sugere que, assim como a natureza, o tempo apagará seus crimes e sua existência, tornando-o apenas mais um fragmento de história.
este desfecho aponta para um sentido crítico aos feitos -- por exemplo -- de portugueses que, ao longo de séculos, escravizaram e assassinaram centenas de milhares de pessoas através de seu processo de escravização e colonoziação predatória, por exemplo na áfrica, como é o caso do país de djaimilia: angola.
e mais: padre alfredo representa o teocentrismo, o clero conivente com as ações terríveis do imperialismo luso e os abusos das lideranças locais, como no brasil, moçambique ou angola, pelos séculos 19 e os anteriores. 
a frase final "as palavras escondiam cobiça" merece atenção: alfredo queria a fama de celestino? alfredo cobiçava as plantas?... 
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segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

o escultor e a tarde - sophia m breyner - comentário

 


    1. O escultor e a tarde


  No meio da tarde
  Um homem caminha:
  Tudo em suas mãos
  Se multiplica e brilha.

  O tempo onde ele mora
  É completo e denso
  Semelhante ao fruto
  Interiormente aceso.

  No meio da tarde
  O escultor caminha:
  Por trás de uma porta
  Que se abre sozinha

  O destino espera.
  E depois a porta
  Se fecha gemendo
  Sobre a Primavera.

       [ O cristo cigano, 1961, Sophia de M B Andresen ]

este é o poema número 1 de "o cristo cigano".
importantesophia breyner encontrou-se com joão cabral de melo neto, em sevilha, espanha, onde vivia o brasileiro que era também diplomata. lá, ela ouviu a lenda de que o escultor espanhol francisco gijón, no final do século 17, recebera uma encomenda de um cristo em agonia. para este fim, o tal artista buscou uma cena que pudesse ver alguém morrendo para conseguir inspiração e fazer seu trabalho. para isso, presenciou o esfaqueamento de um cigano e, assim, obteve material visual que precisava. depois de pronta a peça de madeira (foto acima), muita gente reconheceu o cigano -- apelidado  "cachorro" -- no rosto da estátua e passaram então a chamar a capela onde a escultura está de "capela do cachorro". a obra é o "cristo de la expiración".
                                                     
[ cristo de la expiración ]

sabendo disso, reler o poema faz bem. o texto tem caráter narrativo. tudo o que se multiplica e brilha é a função do artista: construir obras. ironicamente, o cristo do novo testamento transformou água em vinho, multiplicou os pães... só não arrumou um bom lateral pro vasco.
enfim, este poema 1 vai se ligar aos dois últimos poemas do livro, respectivamente os de número 10 e 11. neles, o leitor fica sabendo que um cigano foi morto entre paredes... provavelmente aquelas que ficaram por trás desta porta, aqui no texto 1.
  . . . .  .   .

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