a visão das plantas - djaimilia de almeida

 


romance - djaimilia almeida - angola, 2019

cenário é portugal  --  século 19, predominantemente

enredo base: celestino é um pirata idoso retornando a sua casa numa vila, na rua dos choupos. local estava abandonado e a casa vai sendo recuperada aos poucos, principalmente o jardim, com cravos, roseira, cameleira e outras plantas

o início é assim:

Noite abençoada. Acordou em casa, restaurado, após uma vida cheia. Mas a casa tinha mudado. Com as portadas trancadas, a mobília coberta com lençóis, a toalha manchada de vinho sobre a mesa, a arca da roupa fechada a um canto, os reposteiros de veludo negro, esgarçados pela traça, tudo era outro e, ainda, o mesmo. Na penumbra, o volume dos móveis insinuava fantasmas. O pó, tornado um ser, animava o espaço, iluminado pela claridade através das frestas das janelas.
(...)

segundo a narração -- 3a pessoa onisciente -- as plantas não davam a mínima importância às intenções e ações carinhosas, ali no jardim.

a comunidade da pequena cidade fica com receio quando da chegada de celestino, mesmo idoso, pois era era um reconhecido pirata: traficava escravizados, tinha matado gente, era temido.

há um jogo entre sonho e realidade, em que os pensamentos do capitão se misturam a devaneios e lembranças distorcidas. ao final, o delírio com a velha negra dentro de sua casa e que o acompaha pelas margens do ribeiro reforça essa ação do tempo sobre o raciocínio de celestino, trazendo à tona o delírio. 

um dos instantes de delírio do capitão:
A velha negra não aparecia há muito, mas a despensa ainda vivia durante a noite. Celestino despertou com o ruído de estalidos nas garrafas. Arrastou-se, seminu, entre as sombras. Ninguém o esperava, mas mal podia com o barulho vindo do interior das paredes. O silêncio e o que se seguiu a ele: o abrir do porão, o monte de cadáveres sufocados — ainda agora gente e já alimento de larvas —, o jogar dos corpos ao mar, um a um, sem direito a enterro.

aqui, a imagem do passado, quando celestino e parte da tripulação jogam sacos de cal no porão do navio sufocand e natando negros que fariam uma rebelião. essa oscilação de tempos confere à obra um caráter fragmentado, reforçando ideia de um homem à deriva em sua própria mente. 
com o tempo, as pessoas que demonizaram o retorno do capitão à vila vão morrendo... e as histórias antigas de celestino se tornam lendas e ele chega a ser visto, já bem próximo à morte, como uma espécie de herói. 

trecho final:

Os rumores sobre o seu passado feroz eram já cantigas de pescadores quando, numa noite de  inverno, acabou os seus dias, sem uma dúvida na consciência tranquila. Trazido pelo médico, padre Alfredo veio benzer o corpo na manhã seguinte. O defunto estava lívido e sereno. A sua cor e as rugas confundiam-se com o lençol amarrotado. À saída de casa, a visão das plantas pareceu-lhe uma aleluia pela passagem da alma do capitão. As rosas, os cravos, os abetos, a ameixoeira ainda não sabiam que o seu amigo tinha morrido. Alfredo contemplou o raio de luz que, iluminando as folhas, reflectiu no orvalho sobre as flores, os frutos, os espinhos. Meu pequeno pirata”, gracejou entredentes. As palavras escondiam cobiça. Nas suas mãos pias, todas as plantas morriam.        [ fim ]


a narrativa sugere que, assim como a natureza, o tempo apagará seus crimes e sua existência, tornando-o apenas mais um fragmento de história.
este desfecho aponta para um sentido crítico aos feitos -- por exemplo -- de portugueses que, ao longo de séculos, escravizaram e assassinaram centenas de milhares de pessoas através de seu processo de escravização e colonoziação predatória, por exemplo na áfrica, como é o caso do país de djaimilia: angola.
e mais: padre alfredo representa o teocentrismo, o clero conivente com as ações terríveis do imperialismo luso e os abusos das lideranças locais, como no brasil, moçambique ou angola, pelos séculos 19 e os anteriores. 
a frase final "as palavras escondiam cobiça" merece atenção: alfredo queria a fama de celestino? alfredo cobiçava as plantas?... 
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