quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

mike: o galo sem cabeça e julio cortazar

 



julio cortazar
(1914-1986), belga de pais argentinos, tem um conto, de nome "acefalia", começa assim: 

Cortaram a cabeça a um certo senhor, mas como depois estourou uma greve e não puderam enterrá-lo, esse senhor teve que continuar vivendo sem cabeça e arranjar-se bem ou mal. Em seguida ele notou que quatro dos cinco sentidos tinham ido embora com a cabeça.  dotado somente de tato, mas cheio de boa vontade, sentou-se num banco da praça Lavalle e tocava uma por uma (...) tratando de distingui-las e dar os respectivos nomes. (...) 

estudiosos com diploma dizem que cortázar passa pelo realismo fantástico ou mágico. é um tremendo paradoxo, convenhamos, dizer que algo é realista e mágico ao mesmo tempo, mas não vou discutir com doutor. aliás, nem vou contar o fim do conto por pirraça mesmo. você precisa ler. o quente vem agora: seu nome é mike. e a história é real. muita gente sabia, menos eu, que cortaram a cabeça de um galo, desde o pescoço, e o dito cujo continuou vivendo mais um ano e meio. sério. como quase tudo que é bizarro acontece nos estados unidos, foi lá mesmo que o evento se deu. 1945, no colorado: o fazendeiro lloyd resolveu preparar um galo para o jantar da sogra e, vapt, numa cortada meio mal feita, a cabeça da ave caiu, mas mike – o galo – continuou respirando. desvantagem: nada de cozido de galo, naquele dia. vantagem: ele não cantaria mais. alimentado através de um conta gotas, pingando-se mistura de leite e água em seu buraco no pescoço, o galo mike até engordou. era de fazer inveja à própria sogra de lloyd que, apesar de ter cabeça, continuava sendo sogra, se é que me entendem.


quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024

proibir celular em sala de aula sem debate é absurdo

 


ideia trazida de um dos países mais conservadores do ocidente -- os estados unidos -- uma bolsa que tranca telefones celulares de estudantes, nas escolas, está em vigor, por aqui. olhem, é tremendo erro proibir celulares sem educar. mas isso é coerente com o ritmo da nossa educação. ela sempre foi conservadora. questões como  bullying, violência contra mulher, respeito à comunidade lgbt ou mesmo o racismo, raramente entram em sala. no máximo, numas postagens em mídia eletrônica ou nas pífias reuniões com professores, antes do ano letivo começar. nossas escolas ainda respiram o ensino jesúitico do brasil colônia e império: professor é autoridade. pune.
olhem, vou insistir: não resolve proibir, porque a relação professor-estudante não irá mudar só com isso. é esta relação, aliás, que faz estudantes quererem escapulir daquele ambiente, daquela rotina. por quê? porque a maioria dos assuntos tratados em sala não corresponde à realidade de humanos jovens. há muita erudição, diletantismo, nos currículos. assuntos que fariam sentido para quem já estivesse na universidade. para além de assuntos distantes da realidade, é urgente que outras ações entrem em sala também, como estas que listei acima: bullying; cidadania, política etc.

pra quem não entendeu: não prego a liberação total de uso dos tais aparelhos durante as aulas, mas sim discutir e argumentar com estudantes por que os aparelhinhos devem ficar na mochila ou desligados. precisa ser simples. muitos educadores não querem este trabalho e preferem apenas proibir. cansa.

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clica pra ver matéria sobre celular proibido na escola 2024

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024

jogador ruim ou sistema de jogo mal colado?

 


[ arte: carlos h carneiro via i. a. ]

"(...) Precisamos desneymarizar nosso futebol e um bom começo seria refundando a CBF como um todo. Repensar o jogo a partir de nossas brasilidades, essas que o professor Luiz A Simas ensina que vivem nas frestas. Parar de imitar o que fazem na Europa e de importar a espetacularização que os Estados Unidos associam ao esporte. Resistir à força privatizadora que invade todas as áreas de nossas vidas. Salvar nosso futebol para que, desse modo, possamos oferecer, como alternativa, uma rota de fuga a essa brutal ordem social que nos assola…"

                               [ milly lacombe - portal uol - fevereiro 2024 ]

concordo com essa teoria de milly porque a gente vê o futebol brasileiro mal gerido e só faz os fãs passarem vergonha. é uma tragédia. calendário estúpido, contendo torneios regionais que melhoram zero tanto espetáculo como técnica. são torneios semi-amadores e, claro, deveriam existir neste âmbito: dentro de segundas e terceiras divisões, em seus estados. não se trata, por exemplo, de acabar com os estaduais, mas construir um campeonato mais longo, com mais equipes -- as tais "pequenas" -- para que estas então, joguem mais do que esses quatro meses. as agremiações tidas como "grandes" jogariam torneio regional com menos datas, como se fosse uma pré-temporada, com menos desgastes. olhem, é urgente a criação da série "e", no país. além de torneios regionais decentes, como a copa nordeste. 
tem mais: muitos supostos comentaristas de futebol fazem coro com as viúvas de pelé e dizem que jogadores são ruins, hoje. é patético. jogadores ruins sempre existiram. alguns até foram pra copa do mundo, como gil (
avançado), marinho chagas (lateral), henrique (defensor) ou dario dadá (avançado). e milhares de outros pernas de pau por aí, povoando nossos campos. a questão é fácil: o sistema de jogo, no passado, valorizava transição rápida do meio ao ataque, além do drible, claro. hoje, isso acabou porque na europa não é assim. jogador que dribla muito e parte pra cima das linhas adversárias deixa seu setor descoberto. o melhor -- para europeus -- é o passe, deslocamento curto etc... isso é bom? é ruim? é europeu, ponto. agora, por que copiar? resposta: porque é preciso exportar jogadores jovens que não precisem adaptação, quando forem vendidos para europa, evitando prejuízos a seus agentes e clubes.

terça-feira, 13 de fevereiro de 2024

arte tem preço ou valor?

 

                                                                rafael sanzio por guidobaldo da montefeltro

no começo do mês, na avenida "norte-sul", aqui em campinas, um garoto de pouco mais de um metro de altura equilibrava bolas de tênis -- era a parada do semáforo --, ele  fazia malabarismo com elas, na cabeça, pelo ombro, mãos pra cima e pra trás, às vezes uma escapulia, mas rapidamente se refazia e pronto, lá iam asquatro ou cinco bolas pra cima. alguns motoristas dão umas moedas. outros, um aceno. quanto valeu o show? um real? cinco reais? é pouco? é muito?
no começo do mês de maio, lá de 2010, descobriram uma peça que teria sido pintada pelo renascentista raffael sanzio (1483-1520). uma cabeça de mulher, de uns 30 cm. estava num depósito de um museu, na itália. pelos informes, valia 30 milhões de euros, mais de 150 milhões, em moeda brasileira, hoje. pouco? muito? 

qual o valor da arte? o que deveria sustentar o artista, num universo capitalista a quem a força de trabalho é o único objetivo? no tal sistema, vende-se a força de trabalho ao outro, vende-se identidade. e a arte?  qual função? sua utilidade passa pela transmissão de sensação, fruição, deleite, informação, folclore, história, muita coisa. arte completa o ser humano. arte revela o que não se vê usando apenas a razão. 
quanto vale a partitura original dos concertos de brandenburgo, de bach? quanto custa a igreja s francisco de assis, em ouro preto, no traço de aleijadinho? e o original de "dom casmurro", tem preço? uma folha de cordel, um corte de bordado... dá pra medir em centavos o preço de uma peça de expedito, lá no piauí? e uma escultura de joão do monte, em valinhos? quanto vale o casal de noivos, do mestre vitalino?
esse texto está com perguntas demais... não é bom.

                           
    [ rafael e a fornarina por jean ingres, séc 19 ]

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sexta-feira, 9 de fevereiro de 2024

o caminho difícil


[ rouseeau ]

no livro "conto da ilha desconhecida" (saramago), um homem pede um barco ao rei mas, em princípio, não sabe aonde vai. quer chegar a uma ilha que ninguém conhece. será caminho difícil, pois terá de passar por si próprio.
dante, na "divina comédia", acaba se perdendo, numa floresta e precisa de ajuda... ele também desconhece o caminho a percorrer... vai ser difícil, pois enfrentará só o inferno.
um homem do campo, no conto "a terceira margem do rio" (rosa) expõe a mesma sensação de perda e desconstrução: ele faz um pequeno barco e, sozinho, sai, rio acima, abaixo, num ritmo só seu, adentro, para sempre. vai ser caminho difícil... -- ou o que esse homem passava estava difícil, a gente só imagina.
olhem, pouca gente sai do trilho da razão para seguir um instinto próprio. dizem que ser humano seria sociável, e rousseau, lá no século 18... ah, esquece.

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2024

terça-feira gorda - caio fernando abreu - comentário

 

                                                      caio fernando abreu (1948 - 96)

o texto se inicia com a descrição de uma dança sedutora de um homem para outro homem,  sendo este último, o narrador. 

De repente ele começou a sambar bonito e veio vindo para mim. Me olhava nos olhos quase sorrindo, uma ruga tensa entre as sobrancelhas, pedindo confirmação. Confirmei, quase sorrindo também, a boca gosmenta de tanta cerveja morna, vodca com coca-cola, uísque nacional, gostos que eu nem identificava mais, passando de mão em mão dentro dos copos de plástico. Usava uma tanga vermelha e branca, Xangô, pensei, lansã com purpurina na cara, Oxaguiã segurando a espada no braço levantado, Ogum Beira-Mar sambando bonito e bandido. Um movimento que descia feito onda dos quadris pelas coxas, até os pés, ondulado, então olhava para baixo e o movimento subia outra vez, onda ao contrário, voltando pela cintura até os ombros. (...)

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o trecho lembra os movimentos de rita baiana, em "o cortiço", do aluísio azevedo, 1890.
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Entreaberta, a boca dele veio se aproximando da minha. Parecia um figo maduro quando a gente faz com a ponta da faca uma cruz na extremidade mais redonda e rasga devagar a polpa, revelando o interior rosado cheio de grãos. Você sabia, eu falei, que o figo não é uma fruta mas uma flor que abre para dentro. O quê, ele gritou. O figo, repeti, o figo é uma flor. Mas não tinha importância (...)

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a sequência é o envolvimento dos dois homens, durante um baile de carnaval. o primeiro, além de seduzir o narrador em meio a sua dança e a proximidade dos corpos suados, oferece droga a ele -- narrador -- que, apesar de negar no início, aceita. eles vão à praia, saindo do salão; se envolvem pela areia.
na sequência surgem muitas pessoas. elas espancam a dupla. o narrador não consegue ajudar seu parceiro. foge.

 Fechando os olhos então, como um filme contra as pálpebras, eu conseguia ver três imagens se sobrepondo. Primeiro o corpo suado dele, sambando, vindo em minha direção. Depois as plêiades, feito uma raquete de tênis suspensa no céu lá em cima. E finalmente a queda lenta de um figo muito maduro, até esborrachar-se contra o chão em mil pedaços sangrentos.       
                                                        [ fim ]
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a queda do figo representa o fim trágico, dolorido, da paixão. figo pode sim ser um símbolo fálico,  símbolo da relação homoafetiva, ali, entre eles. 
as referências a xangô, iansã, oxaguiã e ogum dão o tom pagão, mais orgânico à relação homoafetiva. vale lembrar que o texto é do século 20, saiu em 1982. lá, a questão da homossexualidade era ação condenável, praticamente um crime. vide o desfecho desta narrativa. as bênçãos de orixás africanos são a verdadeira justiça para essa ação amorosa e, claro libertadora.
figo e plêiades -- em "terça-feira gorda" -- são alegorias de desejo. ia dizer alegorias de amor, desisti. mais do que isso, figo e plêiades evocam natural liberdade, mesmo que um esteja esborrachado no chão e outro tão distante no céu.

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quarta-feira, 31 de janeiro de 2024

vacas são bússolas vivas

 



neste século 21, cientistas alemães descobriram que as vacas pastam viradas para o norte. não todas, só as normais. é uma tendência, seguindo uma espécie de magnetismo. os estudiosos dessas picanhas vivas, h. burda e sabine begall, levaram anos observando as mimosas e o senso magnético parece mesmo um fato. pastam para o norte. de repente, estariam à espera da grande aurok, a vaca ancestral que um dia voltaria para salvar as que mugem e mascam. o problema é que, pelo brasil, o número de vacas aumenta na mesma proporção que os territórios indigenas diminuem. culpa do homo sapiens.
o ser humano, como você deve conhecer, também tem senso magnético, apesar de que poucos são os que pastam. muitos eu já mandei pastar. outros, nem precisei. olhem, de certa forma, melhor é compreender a natureza das coisas, mesmo que você não saiba onde fica o norte.

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sexta-feira, 26 de janeiro de 2024

uma estátua para arlette

 


[ arlette ]

início do século 21. o rio de janeiro ganha mais uma estátua de notório valor: clarice lispector. chamo atenção para quatro figuras públicas e que não são cariocas: cristo, drummond, clarice e dorival caymmi. todos com estátua, na cidade maravilhosa.

por outro lado, o carioca mais famoso do mundo, agenor oliveira  -- o cartola --, não ganhou o mesmo agrado. olhem, até romário tem estátua...
vejam que cariocas ilustres como tom jobim, noel e machado de assis, ganharam o mimo também. e glória maria? para ela, nada de estátua...

também estão na fila, pelo menos até a publicação desta crônica, fluminenses brilhantes: chiquinha gonzaga, dona ivone lara e arlette pinheiro. sim, arlette, mais conhecida pelo pseudônimo: fernanda montenegro.


segunda-feira, 22 de janeiro de 2024

além do ponto - caio fernado abreu - comentário

 

                                                   caio fernando abreu (1948-1996)


início da narrativa "além do ponto" -- caio f abreu:

Chovia, chovia, chovia e eu ia indo por dentro da chuva ao encontro dele, sem guarda-chuva nem nada, eu sempre perdia todos pelos bares, só levava uma garrafa de conhaque barato apertada contra o peito, parece falso dito desse jeito, mas bem assim eu ia pelo meio da chuva, uma garrafa de conhaque na mão e um maço de cigarros molhados no bolso (...)  - [ morangos mofados ]

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o narrador caminha pela chuva com cigarro e garrafa, na cidade que parece não colaborar com a caminhada. carros espirram lama em seu corpo. mas, segundo a narração, é preciso ir ao encontro dele, de alguém que supostamente o espera e vai acolher seu corpo molhado. haverá música, vinho, roupas secas. 

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 eu revia daquele jeito estranho de já ter estado lá sem nunca ter, hesitava mas ia indo, no meio da cidade como um invisível fio saindo da cabeça dele até a minha, quem me via assim molhado não via nosso segredo, via apenas um sujeito molhado sem capa nem guarda-chuva, só uma garrafa de conhaque barato apertada contra o peito. Era a mim que ele chamava, pelo meio da cidade, puxando o fio desde a minha cabeça até a dele, por dentro da chuva, era para mim que ele abriria sua porta (...)      [ morangos mofados ]
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repara que a narração, no trecho acima, já admite que ele pode nunca ter estado ali antes... por isso, um caminhar pesado, confuso. o narrador vai tropeçar, a garrafa bate na pedra, se quebra, escorre conhaque pelo corpo como um sangue de álcool . enfim, ele chega a um lugar e bate à porta. pessoa alguma atende. nada. fim do texto. 
o que estava levando o narrador obstinadamente àquela porta? um delírio, um sonho, uma alucinação de apaixonado?  pelo jeito, trata-se de uma história de busca frustrada por amor. é o caminho angustiante de alguém que se deteriora e escorre como água da chuva. o álcool pode ter contribuído para este estado. ele ficará batendo -- ad infinitum -- naquela porta, um sísifo urbano. 

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quinta-feira, 18 de janeiro de 2024

ribeirão preto 1981 ensino médio

 


lembro desta foto, era novembro, últimos dias de aula. 1981,  segunda série "g", ensino médio. escola: curso oswaldo cruz, na rua américo brasiliense, ribeirão preto. falta mais gente aí, lembro fernando, katia, ligia... e outros tantos mais.
a foto: da esquerda para direita, ao fundo, francisco, eu (camisa escura) e paulo sérgio (camisa branca); no segundo degrau: taís (blusa vermelha) -- fazendo chifrinho na coleguinha --, alessandra, ivana, maria e washington; sentadas: cristiane, agnes e miriam manini (in memorian).
os nomes peguei no verso da fotografia porque, na ocasião, eu mesmo tive o cuidado de colocar.
não sei o rumo de quase todos, com exceção de miriam (falecida, 2020) e eu mesmo, por aqui, campinas, com aulas de literatura. os demais, será que viram esta foto, na época? era tão difícil -- e caro -- fazer cópias... eu gostava de praticamente todo mundo, achava tudo lindo porque também era meu segundo ano em uma escola privada, começava a gostar mesmo de escrever, embora não tão tímido quanto a maioria, nesta escadaria que era um prédio em frente à escola.
esta imagem é achado recente, em meio a memórias guardadas em caixas de papelão. entre o surpreso e o comovido, resolvi correr risco e publicar. será que verão isto?... como estarão, vocês?...

                     miriam p. manini (joaq. egydio, década 1990)

                            o verso da primeira fotografia


sábado, 13 de janeiro de 2024

o cais em pessoa : durban dentro dele

 

um dos primeiros portugueses que, oficialmente, deixou sua marca por durban, áfrica do sul, foi bartolomeu dias, em 1488. no mesmo lugar, viveu parte da adolescência, o poeta fernando pessoa. ele chegou em 1896, em função do trabalho do padrasto, o cônsul joão rosa. na cidade de durban, pessoa escolheu um heterônimo: c.r. anon (brincadeira com "anônimo").
em 1905, o português das múltiplas personalidades deixava a áfrica do sul.
na cidade, há um relógio em sua memória e uma estátua para bartolomeu dias, a quem pessoa dedicou versos:

    Jaz aqui, na pequena praia extrema
   O Capitão do Fim 
   Dobrado o Assombro, 
   O mar é o mesmo: 
   Já ninguém o tema!

                      (...)

               [in "Mensagem"]

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segunda-feira, 8 de janeiro de 2024

diálogo - caio f abreu - comentário


                                                         caio fernando abreu [1948-96]

"diálogo", do livro "morangos mofados", texto em discurso direto, na estrutura de um drama, uma peça teatral. veja as primeiras linhas e o final:

A: Você é meu companheiro. 

B: Hein? 

A: Você é meu companheiro, eu disse. 

B: O quê? 

A: Eu disse que você é meu companheiro. 

B: O que é que você quer dizer com isso? 

A: Eu quero dizer que você é meu companheiro. Só isso. 

B: Tem alguma coisa atrás, eu sinto. 

A: Não. Não tem nada. Deixa de ser paranóico.

 (...)

A: Eu quero que você seja meu companheiro, eu disse. 

B: O quê? 

A: Eu disse que eu quero que você seja meu companheiro. 

B: Você disse? 

A: Eu disse? 

B: Não. Não foi assim: eu disse. 

A: O quê? 

B: Você é meu companheiro. 

A: Hein?
                           (ad infinitum)  
                                                         
 [ fim ]
                                                     - morangos mofados -

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enquanto "A" questiona B sobre ser seu companheiro, "B" desconversa. até que na última fala de "B", este assume que é o companheiro de "A" mas agora é "A" que parece não entender. e assim deve seguir o diálogo, confuso, sem a interação objetiva. um diálogo interditado pela dificuldade de compreensão entre ambos. até o infinito. é a falta de entendimento. o assunto aqui é ser companheiro do outro. pois que no final século 20 -- de onde veio o livro de caio --, em alguns setores da sociedade, referir-se a alguém como "companheiro", "companheira" era sinal de intimidade, confiança, compromisso, amor mesmo. pelo jeito, neste caso, o amor truncado, a falta de clareza e o medo imperam na troca de palavras, nesse texto que abre "morangos mofados".
o livro, como um todo, traz a tônica de relações truncadas, quebra de expectativa e frustrações, além de poucos momentos de prazer.
o texto "diálogo" -- com perdão da redundância -- dialoga com "além do ponto", narativa do mesmo livro "morangos mofados".

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sexta-feira, 29 de dezembro de 2023

além da fábula: toy story e frankenstein

                                                          

na televisão, passa um dos filmes "toy story" (pixar). famosa fábula infantil e adulta ao mesmo tempo. num dado momento, um dos bonecos diz a seu parceiro de plástico: "você é um brinquedo!", tentando expor a realidade dura daquele instante. era necessário fazer com que o boneco de astronatuta reconhecesse que não tinha super poderes, era descartável... e também não voaria. sobra o  desespero de quem quer ser amado... os brinquedos são imagem e semelhança de seus criadores. tanto cebolinha quanto a barbie. é assim como mitos ou fábulas.
impossível não lembrar a criatura de "frankenstein" (séc 19), narrativa de mary shelley. o tempo frio, a agonia das noites longas e a ambientação gótica reforçam, no leitor, uma sensação de desespero e de muita coisa errada. num dado momento do livro, criatura e criador conversam, em região gelada da suíça. victor expõe a sua criatura que ela é única e é melhor que desapareça. ela não passava de um fetiche de cientista que, como se imagina, era homem estranho. sobra desespero de quem quer ser amado...

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terça-feira, 26 de dezembro de 2023

o dia que júpiter encontrou saturno - caio f abreu - comentário

 


o conto, do livro "morangos mofados" (caio f abreu) traz uma história provavelmente datada: dezembro de 1980. júpiter e saturno estão em conjunção a cada 20 anos, aos olhos dos viventes do planeta terra. este ano, 1980, foi momento do encontro visível desses corpos do céu. narrador onisciente conta uma narrativa sob duas perspectivas diferentes. começa assim:

Foi a primeira pessoa que viu quando entrou. Tão bonito que ela baixou os olhos, sem querer querendo que ele também a tivesse visto.  (...) Com a movimentação dos outros, levantando o tempo todo para dançar rocks barulhentos ou afundar nos quartos onde rolavam carreiras e baseados, devagarinho conquistou a cadeira de junco junto à janela. A noite clara lá fora estendida sobre a Henrique Schaumann (...)
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a narrativa tem como cenário a cidade de são paulo.
história singela e simples: ela é tímida e está à janela, vendo estrelas, "discretamente infeliz" . ele, calças brancas, queimado de sol. conversam à beira da janela, mas não há conflitos explícitos.
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E de repente o rock barulhento parou e a voz de John Lennon cantou every day, every way is getting better and better. Na cabeça dela soaram cinco tiros. Os olhos subitamente endurecidos da moça voltaram-se para dentro, esbarrando nos olhos subitamente endurecidos do moço.
(...)
- Você gosta de Júpiter? 

- Gosto. Na verdade “desejaria viver em Júpiter onde as almas são puras e a transa é outra”. 

- Que é isso? 

- Um poema de um menino que vai morrer. 

- Como é que você sabe? 

- Em fevereiro, ele vai se matar em fevereiro. 

- Hein? 

(Silêncio) 

- Você tem um cigarro? 

- Estou tentando parar de fumar. 

- Eu também. Mas queria uma coisa nas mãos agora. 

- Você tem uma coisa nas mãos agora. 

- Eu? 

- Eu. 

(silêncio)

(...) 

- Eu só sinto, mas não sei o que sinto. Quando sei, não compreendo. 

- Ninguém compreende. 

- Às vezes sim. Eu te ensino. 

 (...)

- Vou ver Júpiter e me lembrar de você. 

-Vou ver Saturno e me lembrar de você. 

- Daqui a vinte anos voltarão a se encontrar. 

- O tempo não existe. 

- O tempo existe, sim, e devora. 

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o verso "desejaria viver em júpiter onde as almas são puras..." é de um poema de henrique do valle (vazio na carne). na sequência, ficam mais próximos, se beijam e ele vai embora. na rua, ele olha pra cima, vê uma moça à janela tentando dizer algo, ele não ouve. aí, em sua cabeça, soaram soaram cinco tiros. em seguida , ele atravessa a avenida e ela se recolhe. fim.
prosa poética que personifica a união dos planetas que se aproximam e partem a cada vinte anos, silenciosamente.
o tema é a solidão, linha mestra do estilo do livro "morangos mofados". solidão, mesmo que próximo a outro ser.
em dezembro de 1980, tempo do encontro dos planetas, cinco tiros soaram, em frente ao edifício dakota, nova york. era o fim para john lennon.

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quinta-feira, 21 de dezembro de 2023

discutir literatura de homens ou mulheres no vestibular mascara o mais importante

 


figuras importantes da literatura, por aqui, não vêem com bons olhos a escolha de uma lista de leitura composta apenas por mulheres, para o vestibular da usp (fuvest), em 2026. de certa forma, uma lista só feminina pode mascarar o machismo inerente à cultura do país, principalmente nos século 19 e 20. concorda-se.
direito reconhecido em criticar o que quer que seja, tudo certo também. agora, sinto que se dá importância demais a um exame que não pretende medir o grau de conhecimento de estudantes. se fuvest escolhe este ou aquele, esta ou aquela, não vai alterar o preço do feijão. a literatura dos homens -- excluídos da lista -- não será excluída do mundo, eles continuarão aí. vestibular é exame, não é prova. vestibular não premia o bom esudante, a boa estudante. quem passa no vestibular xis só prova que foi bem naquele tipo de exame. passar em vestibulares, por aqui, não é tarefa apenas para quem estuda muito, mas sim, quem treina aquele tipo de prova.   
repito: legal discutir literatura, machismo, racismo etc. agora, não dá pra dar tanta moral pra uma prova (fuvest) que, de fato não busca medir conhecimento de modo pedagógico. quem faz isso é escola. pelo menos, deveria fazer. vestibular é exame. exclui, elimina, não gera aprendizado de fato. compare com a prova da carteira de motorista: fazer baliza e saber ler placas de trânsito não faz da pessoa -- necessariamente -- excelente motorista. educação no trânsito é outra coisa.
essa discussão sobre mais homens ou mais mulheres, no vestibular encobre o principal: leitura na escola (ens médio e fundamental). o debate de verdade precisa morar dentro das escolas. como estão as leituras nas salas de aula?

    clique aqui e veja a lista 2026 fuvest

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sábado, 16 de dezembro de 2023

hutukara - samba-enredo salgueiro 2024 - não vamos nos render

 


[ estatueta de omama enviada à organização do oscar 2023, eua ]
_ arte: felipe corcione _


 É Hutukara! O chão de Omama
 O breu e a chama, Deus da criação
 Xamã no transe de Yakoana
 Evoca Xapiri, a missão
 Hutukara, ê! Sonho e insônia
 Grita a amazônia, antes que desabe
 Caço de tacape, danço o ritual
 Tenho o sangue que semeia a nação original
 Eu aprendi português, a língua do opressor
 Pra te provar que meu penar também é sua dor
 Falar de amor enquanto a mata chora
 É luta sem flecha, da boca pra fora!
 Tirania na bateia, militando por quinhão
 E teu povo na plateia, vendo a própria extinção
 Yoasi que se julga: Família de bem
 Ouça agora a verdade que não lhe convém
 Você diz lembrar do povo Yanomami em 19 de abril
 Mas nem sabe o meu nome e sorriu da minha fome
 Quando o medo me partiu
 Você quer me ouvir cantar em Yanomami
 pra postar no seu perfil
 Entre aspas e negrito, o meu choro,
 o meu grito, nem a pau Brasil!
 Antes da sua bandeira, meu vermelho deu o tom
 Somos parte de quem parte, feito Bruno e Dom
 Kopenawas pela terra, nessa guerra sem um cesso
 Não queremos sua ordem, nem o seu progresso
 Napê, nossa luta é sobreviver!
 Napê, não vamos nos render!
 Ya temí xoa! Aê, êa!
 Ya temí xoa! Aê, êa!
 Meu Salgueiro é a flecha
 Pelo povo da floresta
 Pois a chance que nos resta
 É um Brasil cocar!

  Composição -
Pedrinho Da Flor / M Motta / Arlindinho Cruz / R Galante / Dudu Nobre / L Gallo / Ramon Via 13 / R Ribeiro

* h
utukara - associação yanomami (sem fins lucrativos) que reúne habitantes da terra yanomami
* xapiri  -  espíritos da floresta
* yakoana  -  substância alucinógena feita para rituais xamânicos 
* omama  -  entidade divina que criou os yanomâmi; guerreiro criador
* yoasi  -  a criação de seu povo yanomâmi se deve à copulação de omama com a filha do monstro aquático taperesiki; já yoasi é irmão de omama -- ele é responsável pela morte e os males do universo
* napê  - ou "napepê" - significa "não" -- também pode ser referência a quem não é yanomâmi ou simplesmente um inimigo
* kopenawa
  -  davi kopenawa, liderança indígena yanomâmi; ativista
* ya temí xoa  -  expressão yanomâmi: "você ainda vive?"
* bruno e dom  -  bruno pereira (indigenista) e dom phillips (jornalista) assassinados em 2022 enquanto defendiam direitos indígenas

 
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samba reforça o compromisso com causa dos povos da floresta, nossos ancestrais. está dito e escrito que a ambição e hipocrisia estão extinguindo nossa gente, não só yanomâmi. ambição, hipocrisia e deseducação constante são o mal de agora e de antes.
a história dos povos indígenas deveria estar nos bancos escolares, mas a gente sabe como ainda funciona esse ciclo chamado "educação básica", por aqui... a letra do samba vai na ferida das "pessoas de bem", aqueles regidos pelo egoísmo, pela ignorância e, claro, são os que mais odeiam índios e pretos. é a gente que ri da fome dos índios ou que condena aqueles que ajudam (salve,  pe. lancelotti!) os necessitados sem teto e, agora, essa gente vai merecendo o esculacho no maior show de arte e aprendizado que é o carnaval carioca.
não vamos nos render. 
"meu vermelho deu o tom" está num dos versos do samba enredo e significa o pau brasil, como pode ser a cor que vai na pele de muitos indígenas em tempos de guerra. vermelho também é sangue, aquilo que corre na veia ancestral, assim como o que é derramado por indígenas e por aqueles que ousam defender esse povo ancestral -- citados na canção, diga-se... 
pois é, no nosso cotidiano escolar, tem sido mais importante o mito grego, o mito cristão do que omama. assim como deuses dos brancos mais conhecidos que xangô ou iemanjá. resta a poucos abnegados, como a turma do salgueiro, incorporar a flecha para que o brasil seja cocar. 
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 importante :
Aceitar a voz de seus ancestrais, ver os espíritos da floresta, xapiri, dançarem diante de seus olhos (...)  E reafirmar sua possibilidade humana, sua identidade, diante da vontade predatória dos brancosO costume ameríndio, afinal, está mais ligado ao futuro da humanidade do que ao seu passado, como refletia o poeta e ensaísta mexicano Octavio Paz em 1993: A extinção de cada sociedade marginal e de cada diferença étnica e cultural significa a extinção de uma possibilidade de sobrevivência da espécie inteira. Com cada sociedade que desaparece, destruída ou devorada pela civilização industrial, desaparece uma possibilidade do homem – não só de um passado e um presente, mas um futuro.   
                                                                                                                       [ revista Cult ]

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veja o samba-enredo de 2024 -- hutukara


 
veja o samba eneedo de 2023 - salgueiro: 



ailton krenak -- outra voz da floresta:



quinta-feira, 14 de dezembro de 2023

silêncio de um cipreste - cartola - um outro olhar

 


numa primeira postagem (julho, 2022) comentando o samba "silêncio de um cipreste", do rei cartola, afirmei o seguinte:    

(...) parece mesmo que existe culpa, nessa letra de cartola. então, a solução para o defeito seria mudar o pensamento – ao invés de tentar fazer alguma coisa. o pensamento, segundo o texto, é folha do cipreste que o vento leva, não tem peso. uma ação, pelo contrário, fica, tem peso, pode ser julgada. (...)

      [ clica aqui pra ler o texto todo ]

hoje, releio, estudo, converso, então, resolvo fazer ressalva. 
assim: a questão, no texto de cartola, não seria apenas o contraste entre o pensar e o fazer. lidar com pensamento não significa necessariamente deixar de fazer uma ação.  pode ser, mas nem sempre. olhem, a letra é introspectiva, revela arrependimento, é fato. agora, mudar o pensar também pode ser uma maneira nova de encarar o passado, ou seja, rever aquilo que o poeta diz não ter realizado, mas sem o peso. insisto: se o pensamento é como folha leve, então pode-se ver o passado de outra forma: com menos mágoa.

a letra está aqui:

  SILÊNCIO DE UM CIPRESTE
          Cartola [ 1908 - 80 ]

    Todo mundo tem o direito
    De viver cantando
    O meu único defeito
    É viver pensando
    Em que não realizei
    E é difícil realizar
    Se eu pudesse dar um jeito
    Mudaria o meu pensar
    O pensamento é uma folha desprendida
    Do galho de nossas vidas
    Que o vento leva e conduz
    É uma luz vacilante e cega
    É o silêncio do cipreste
    Escoltado pela cruz

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