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segunda-feira, 22 de janeiro de 2024

além do ponto - caio fernado abreu - comentário

 

                                                   caio fernando abreu (1948-1996)


início da narrativa "além do ponto" -- caio f abreu:

Chovia, chovia, chovia e eu ia indo por dentro da chuva ao encontro dele, sem guarda-chuva nem nada, eu sempre perdia todos pelos bares, só levava uma garrafa de conhaque barato apertada contra o peito, parece falso dito desse jeito, mas bem assim eu ia pelo meio da chuva, uma garrafa de conhaque na mão e um maço de cigarros molhados no bolso (...)  - [ morangos mofados ]

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o narrador caminha pela chuva com cigarro e garrafa, na cidade que parece não colaborar com a caminhada. carros espirram lama em seu corpo. mas, segundo a narração, é preciso ir ao encontro dele, de alguém que supostamente o espera e vai acolher seu corpo molhado. haverá música, vinho, roupas secas. 

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 eu revia daquele jeito estranho de já ter estado lá sem nunca ter, hesitava mas ia indo, no meio da cidade como um invisível fio saindo da cabeça dele até a minha, quem me via assim molhado não via nosso segredo, via apenas um sujeito molhado sem capa nem guarda-chuva, só uma garrafa de conhaque barato apertada contra o peito. Era a mim que ele chamava, pelo meio da cidade, puxando o fio desde a minha cabeça até a dele, por dentro da chuva, era para mim que ele abriria sua porta (...)      [ morangos mofados ]
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repara que a narração, no trecho acima, já admite que ele pode nunca ter estado ali antes... por isso, um caminhar pesado, confuso. o narrador vai tropeçar, a garrafa bate na pedra, se quebra, escorre conhaque pelo corpo como um sangue de álcool . enfim, ele chega a um lugar e bate à porta. pessoa alguma atende. nada. fim do texto. 
o que estava levando o narrador obstinadamente àquela porta? um delírio, um sonho, uma alucinação de apaixonado?  pelo jeito, trata-se de uma história de busca frustrada por amor. é o caminho angustiante de alguém que se deteriora e escorre como água da chuva. o álcool pode ter contribuído para este estado. ele ficará batendo -- ad infinitum -- naquela porta, um sísifo urbano. 

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segunda-feira, 4 de dezembro de 2023

aqueles dois - caio fernando abreu - comentário

 

"aqueles dois", conto do livro "morangos mofados", do caio f abreu (1948-96)

raul e saul trabalham numa mesma firma. um é do norte do país, outro do sul. gostam de van gogh, de dalva de oliveira, carlos gardel e bebidas. trabalham num lugar que, segundo um deles era um "deserto de almas também desertas".

a aproximação deles é algo lento, natural, sem barulhos ou dilemas.

não há, explicitamente, ao longo da narrativa, uma relação sexual entre eles, mas são bastante íntimos. raul perde a mãe, passa uma semana fora. saul sente falta. raul volta, eles bebem, se abraçam longamente. dormem no mesmo quarto, nus. saul vai embora logo cedo.
logo depois, em janeiro, o chefe da repartição comunica a ambos que recebeu cartas de "um atento guardião da moral". nelas, falava-se em "psicologia deformada" e outras acusações. o chefe, temendo pela imagem da empresa, demite os dois.

termina assim:

Demoraram alguns minutos na frente do edifício. Depois apanharam o mesmo táxi, Raul abrindo a porta para que Saul entrasse. Ai-ai! alguém gritou da janela. Mas eles não ouviram. O táxi já tinha dobrado a esquina. Pelas tardes poeirentas daquele resto de janeiro, quando o sol parecia gema de um enorme ovo frito no azul sem nuvens do céu, ninguém mais conseguiu trabalhar em paz na repartição. Quase todos ali dentro tinham a nítida sensação de que seriam infelizes para sempre. E foram.

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o título completo do conto é: 
 "aqueles dois" (história de aparente mediocridade e repressão)

pois bem, o texto não poderia ser mais explícito. o tempo da narrativa é contemporâneo ao lançamento do livro "morangos mofados" (1982), algo então em torno dos anos 1970 e início dos 80. de novo, a frustração não de amor censurado, mas falta de liberdade. falta de respeito ao outro, principalmente neste quesito sexual, sentimental, ligado ao gênero. a máxima "seu corpo, suas regras" deveria fazer sentido sempre. 
lutar contra mediocridade ainda faz parte de nossas pautas -- "nossas" os educadores e educadores que tenham mínimo de humanidade nas veias, diga-se.

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