caio fernando abreu (1948-1996)
início da narrativa "além do ponto" -- caio f abreu:
Chovia, chovia, chovia e eu ia indo por dentro da chuva ao encontro dele, sem guarda-chuva nem nada, eu sempre perdia todos pelos bares, só levava uma garrafa de conhaque barato apertada contra o peito, parece falso dito desse jeito, mas bem assim eu ia pelo meio da chuva, uma garrafa de conhaque na mão e um maço de cigarros molhados no bolso (...) - [ morangos mofados ]
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o narrador caminha pela chuva com cigarro e garrafa, na cidade que parece não colaborar com a caminhada. carros espirram lama em seu corpo. mas, segundo a narração, é preciso ir ao encontro dele, de alguém que supostamente o espera e vai acolher seu corpo molhado. haverá música, vinho, roupas secas.
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eu revia daquele jeito estranho de já ter estado lá sem
nunca ter, hesitava mas ia indo, no meio da cidade como um invisível fio saindo
da cabeça dele até a minha, quem me via assim molhado não via nosso
segredo, via apenas um sujeito molhado sem capa nem guarda-chuva, só uma
garrafa de conhaque barato apertada contra o peito. Era a mim que ele
chamava, pelo meio da cidade, puxando o fio desde a minha cabeça até a dele,
por dentro da chuva, era para mim que ele abriria sua porta (...) - [ morangos mofados ]
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repara que a narração, no trecho acima, já admite que ele pode nunca ter estado ali antes... por isso, um caminhar confuso. o narrador vai tropeçar, a garrafa bate na pedra, se quebra, escorre conhaque pelo corpo como um sangue de álcool. enfim, ele chega a um lugar e bate à porta. pessoa alguma atende. nada. fim do texto.
o que estava levando o narrador obstinadamente àquela porta? um delírio, um sonho, uma alucinação de apaixonado? pelo jeito, trata-se de uma história de busca frustrada por amor. é o caminho angustiante de alguém que se deteriora e escorre como água da chuva. o álcool pode ter contribuído para este estado. ele ficará batendo -- ad infinitum -- naquela porta, um sísifo urbano.
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