sexta-feira, 7 de fevereiro de 2025

fantasmas - chimamanda adichie

 



"fantasmas": conto de chimamanda adichie, no livro "no seu pescoço"

em "fantasmas", professor de matemática james nwoye -- aposentado da universidade --, reencontra outro porfessor: ikenna, da área de sociologia. no passado, era combativo, exigia direitos melhores aos funcionários da universidade. james o vira pela última vez 37 anos antes, durante a guerra da biafra. era dado como morto, mas ikenna conta que foi para suécia.

a ausência do amigo ikenna okoro pode representar para o professor james uma lacuna em sua própria história e identidade. a ausência de ikenna não é apenas a falta de um amigo, mas simboliza também a perda de um passado que foi devastado pela guerra, pelas mortes e pelas mudanças irreversíveis.

a memória de ikenna pode estar associada a um tempo mais estável e promissor, antes da guerra transformar tudo em ruínas. assim, a ausência dele -- o professo ikenna -- funciona como um lembrete silencioso do que foi perdido: amigos, familiares, uma nação mais esperançosa. a conversa entre os dois gira em torno da guerra, da corrupção no país e as mudanças na universidade. james menciona que perdeu tudo durante a guerra e que seu pedido de pensão está emperrado por burocracia e corrupção. ainda bem, afirma james, que guardou dinheiro do tempo em que trabalhava no ministério.

além disso, para o professor j. nwoye, que vive uma existência tranquila, mas melancólica, ikenna talvez seja um fantasma não apenas no sentido literal — alguém que ele acreditava morto — mas também um símbolo das ausências que moldaram sua vida. o professor nwoy perdeu a primeira filha, na guerra, e ebere -- a esposa -- faleceu depois.

eis aqui as últimas linhas do conto:

Estou agora sentado em meu escritório, onde dei as notas dos trabalhos de meus alunos e ajudei Nkiru a fazer os deveres de matemática do ensino médio. O couro da poltrona está gasto. A tinta em tom pastel acima das prateleiras de livros está descascando. O telefone está na minha mesa, sobre uma enorme lista telefônica. Talvez ele toque e Nkiru me conte algo sobre nosso neto, sobre como ele foi bem na escola hoje, o que me fará sorrir, embora eu ache que os professores americanos não sejam rígidos o suficiente e deem notas máximas com facilidade demais. Se ele não tocar em breve, então eu tomarei um banho, irei para a cama e, na escuridão silenciosa do quarto, tentarei discernir o som da porta abrindo e fechando

                                          [ fim ]

repare que assim que james nwoye, idoso, se senta, chegam as lembranças do tempo em que sua filha estava no ensino médio e ele corrigia provas. é o passado. as lembranças de tempos tranquilos -- antes da guerra -- são um conforto. ikenna, professor tido como morto, também.

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quarta-feira, 5 de fevereiro de 2025

precisamos nos defender

 

                                                                 [ dahmer ]

são muias as notícias e informações trágicas: pessoas que matam outras por ciúme ou dívida, urgências climáticas, nazismo em alta, ganância, desmatamento...

precisamos nos defender.

num passado não muito distante, grupos da chamada esquerda ideológica pregavam um estado diferente, com distribuição melhor da renda e reforma agrária. hoje, a situação piorou demais, tanto que a chamada esquerda se ocupa agora em defender esse estado que está aí, ou seja: eleição; educação; saúde pública e a não privatização de serviços como luz e água. o básico. 

precisamos nos defender. 

um caminho é o exercício da argumentação. a leitura. a arte, a ciência, o esporte. compartilhar saídas para esse caos ultra conservador -- filho da ganância -- é urgente. escolas são locais propícios a este tipo de ação cidadã: feiras de ciência; mostras culturais; estudos do meio; ações coletivas em prol do meio ambiente; enfim, fazer do estudante um protagonista, para que ele propague a ideia da democracia necessária, o estudo que muda o mundo, a inclusão  e a noção de que, hoje, pelas eleições é possível salvar a sociedade do desmantelamento. 

precisamos nos defender. 

olhem, consciência de classe, voz para quem lê e se preocupa com o próximo, além de intepretação de texto, tudo isso é só o início. mas precisa acontecer porque precisamos nos defender.

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domingo, 2 de fevereiro de 2025

voto - narcisa amália - comentário

 


        VOTO

                     À MINHA MÃE

  

   Ide ao menos de amor meus pobres cantos

  No dia festival em que ela chora,

  Com ela suspirar nos doces prantos!

                        Álvares de Azevedo

 

A viração que brinca docemente

No leque das palmeiras,

Traga à tu'alma inspirações sagradas,

Delícias feiticeiras.

A flor gazil que expande-se contente

Na gleba matizada,

Inveja-te a tranquila e leda vida

Dos filhos sempre amada.

Só teus olhos rorejem délio pranto

De mística ternura;

Como silfos de luz cerquem-te gozos,

Enlace-te a ventura!

Os filhos todos submissos junquem

De rosas tua estrada:

E curvem-se os espinhos sob os passos

Da Mãe idolatrada!

Tais são as orações que aos céus envia

A tua pobre filha:

E Deus acolhe o incenso, embora emane

De branca maravilha!

                    [ narcisa amália, nebulosas, 1872 ] 


        notas_

  leda - feliz

  délio - relativo à ilha de delos, em tempos de apolo (grécia)

  gazil -  elegante

  silfos  -  seres espirituais ligados ao ar

  gleba  - porção de terra; terreno

  rorejar  -  gotejar; orvalhar

  junquem -  cubram-se de juncos

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eu lírico faz oferenda em forma de versos e dedica à mãe. revela que a vida alegre e tranquila dos filhos inveja o que agora possui a mãe, ou seja, esta deve estar em local perfeito, divino. a figura da mãe, aliás, é idealizada: trata-se de espírito sagrado. 

repare que o "embora", ao final,  parece marcar uma contradição: apesar da grandiosidade e pureza dessas manifestações místicas, elas são ainda frágeis ou pequenas diante do que a mãe merece. o "embora", explicita que o que vai ser ofertado é único, mas vem de uma figura singela e humana: a filha que ainda está na terra. 

este "embora" reforça a humildade do eu lírico: deus aceita as orações, mas elas vêm de uma criatura simples, como uma "maravilha branca", algo belo, porém efêmero. é  um misto de gratidão e reconhecimento das próprias limitações.
"branca maravilha" pode signficar a pureza do gesto que, mesmo humilde, modesto, se eleva com sinceridade e amor.

no contexto, claro, do séc 19 e o universo moral da poetisa, podemos afirmar que esta expressão "branca maravilha" é poética, simbólica pois une a fé e a simplicidade de quem envia as orações, ou seja, algo puro.

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sexta-feira, 31 de janeiro de 2025

aflita - narcisa amália - comentário

 


    AFLITA

 

Per lui solo affido sull' ali dei venti

Il suon lusinghiero di garruli accentil

Deh riedi, deh riedi... mi stringi al tuo cor

E giorni beati vivremo d'amor!

            Il Guarany

 

Desde a hora fatal em que partiste,

Turbou-se para mim o azul do céu!

Velei-me na mantilha da tristeza,

Como Safo na espuma do escarcéu!

Até então o arcanjo da procela

Não enlutara o lago das quimeras,

Onde minh'alma, garça langorosa,

Brincava à luz de etéreas primaveras.

Mas um dia atraindo ao vasto peito

Minha pálida fronte de criança,

Murmuraste tremendo: "Parto em breve:

Mas não te aflijas, voltarei, descansa!"

Ai! Que epopeia túrgida de lágrimas

Na comoção daquela despedida!

Eu soluçava envolta em véu de prantos:

"Quando voltares, já serei sem vida!"

Desde então, comprimindo atrás angústias,

Vou te esperar à beira do caminho;

Voltam cantando ao sol as andorinhas,

Só tu não volves ao deserto ninho!..

Quando a tribo inquieta das falenas

Liba filtros nas clícias da campina,

Busco da redenção o augusto símbolo,

E faleço de amor como Corina!

Pois bem! Se enfim voltares desse exílio

Ave errante, fugindo à quadra hiberna.

Vem à sombra do val: sob os ciprestes

Comigo fruirás ventura eterna!

 

       [ narcisa amália, nebulosas, 1872 ]

 

   notas_

túrgida  -  inchada

clícia  -  parte de interna de algumas flores; pode ser referência a

      clície - ou clitia - (mitolog)  teve amor não correspondido

falena - borboleta noturna

liba - bebe (libar: beber em nome de alguém)

langrosa - melancólica

Corina de Tângra - poetisa grega, viveu entre os séculos V e VI a.C.

 

epígrafe: trecho da ária de ceci, ato 1, ópera "o guarani", de carlos gomes (1836-1896), é obra baseada no romance "o guarani', de j de alencar: "somente por ele confio / às asas dos ventos / o som prazeroso / de ruidosas inflexões! / Ah! volte, volte / aperte-me contra seu coração / e viveremos dias felizes de amor

 

a angústia no poema "aflita", de narcisa é motivada pela separação de uma pessoa amada. desde a partida dele, tudo na vida do eu lírico melancólico. ela descreve sua tristeza ao comparar a ausência dele a um céu nublado e um lago de sonhos escurecido. a angústia é intensificada pela promessa não cumprida de retorno.

os versos expressam um desejo de reencontro, mas também sugerem a perda de esperança com a passagem do tempo. a dor do abandono e a expectativa frustrada de rever o amado são elementos centrais que alimentam a angústia da poeta. 

safo, conhecida por sua poesia intensa e emocional, frequentemente explorava temas como o amor, a paixão e a beleza, muitas vezes com uma sensualidade marcante.

no contexto do poema, a menção a safo parece expor o sofrimento da poeta grega em meio às suas paixões e aos conflitos emocionais. "espuma do escarcéu" reforça a imagem de turbulência e entrega, comuns tanto na obra de safo quanto na própria experiência do eu lírico. ao final, o eu líroco revela que quando a pessoa que partiu voltar, o reencontro -- muito provavelmente -- será na morte, uma vez que ela já estará "sob os ciprestes", um eufemismo para túmulo. embora a sensualidade não seja explicitamente destacada, ela pode ser inferida como parte do mundo emocional descrito no poema, já que a poetisa safo é citada.

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terça-feira, 28 de janeiro de 2025

nebulosas - livro de narcisa amália - comentário

 




narcisa amália de campos (1852-1924)
nasceu em são joão da barra, rio de janeiro e faleceu na cidade do rio de janeiro

"nebulosas": poesias românticas com algum teor crítico. isso a aproxima do que fez castro alves, na mesma época, ou seja, na segunda metade do século 19. o livro de narcisa é de 1872. 
o livro apresenta três partes: a primeira com um poema apenas, "nebulosas"; a segunda com 27 poemas e a terceira, 16 poemas. o texto que abre esta última parte é justamente "castro alves".
no geral, o que chama atenção do leitor, hoje, é o excesso de termos raros, uma escolha lexical que pode cansar o leitor apressado, dificultando a interpretação, num primeiro momento. é preciso estar sempre próximo a um dicionário.

no conjunto, a obra "nebulosas" é de lirismo denso, místico, lavado de cristianismo e melancolias. a natureza é constantemente citada como cúmplice das emoções, em muitos poemas. o livro "nebulosas" também traz atmosfera contemplativa e, muitas vezes, mora aí o elemento divino. recheado de adjetivos, é puro romantismo.
o aprimoramento técnico no trabalho com a linguagem chama atenção justamente num universo em que o feminino pouco transitava: o mundo erudito (e masculino) das letras, século 19.

veja o poema "nebulosas" que abre o livro:


            NEBULOSAS

 No seio majestoso do infinito,

– Alvos cisnes do mar da imensidade –

Flutuam tênues sombras fugitivas

Que a multidão supõe densas caligens,

E a ciência reduz a grupos válidos;

Vejo-as surgir à noite, entre os planetas,

Como visões gentis à flux dos sonhos;

E as esferas que curvam-se trementes

Sobre elas desfolhando flores d'ouro,

Roubam-me instantes ao sofrer recôndito!

Costumei-me a sondar-lhe os mistérios

Desde que um dia a flâmula da ideia

Livre, ao sopro do gênio, abriu-me o templo

Em que fulgura a inspiração em ondas;

A seguir-lhes no espaço as longas clâmides

Orladas de incendidos meteoros;

E quando da procela o tredo arcanjo

Desdobra n'amplidão as negras asas,

Meu ser pelo teísmo desvairado

Da loucura debruça-se no pélago

Sim! São elas a mais gentil feitura

Que das mãos do Senhor há resvalado!

Sim! De seus seios na dourada urna,

A piedosa lágrima dos anjos,

Ligeira se converte em astro esplêndido!

No momento em que o mártir do calvário

A cabeça pendeu no infamo lenho,

A voz do Criador, em santo arrojo,

No macio frouxel de seus fulgores

Ao céu arrebatou-Ihe o calmo espírito!

Quando desci mais tarde, deslumbrada

De tanta luz e inspiração, ao vale

Que pelo espaço abandonei sorrindo

E senti calcinar-me as débeis plantas

Do deserto as areias ardentíssimas:

Ao fugir das cendais que estende a noite

Sobre o leito da terra adormecida,

Fitei chorando a aurora que surgia!

E - ave de amor - a solidão dos ermos

Povoei de gorjeios melancólicos!..

Assim nasceram os meus tristes versos,

Que do mundo falaz fogem às pompas!

Não dormem eles sob os áureos tetos

Das térreas potestades, que falecem

De morbidez nos flácidos triclínios!

Cortando as brumas glaciais do inverno

Adejam nas estâncias consteladas

Onde elas pairam; e à luz da liberdade

Devassando os mistérios do infinito,

Vão no sólio de Deus rolar exânimes...

                                

     notas_

  frouxel – qualidade daquilo que é macio; penugem macia

  flux  -  abundamente; não deixar escapar nada

  infamo – difamado; desonrado

  procela  -  tempestade

  tredo  -  falso; traidor

  pélago – espécie de abismo oceânico

  triclínio  - roma antiga: sala de jantar com três leitos (similares a               sofás) - eram símbolo de luxo e ociosidade

  cendais - tecidos finos e transparentes

  clâmide – manto, na grécia antiga, que se prendia com um broche

  exânime  -  quase morto; moribundo

  sólio  - acento elevado típico de uso real

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poema "nebulosas" apresenta o eu lírico em dois momentos distintos: no início, a comparação do céu estrelado com "alvos cisnes do mar da imensidade" traz sensações de leveza e beleza etérea. a imagem dos cisnes sugere movimento gracioso e harmonia. num outro momento, embebida nas reflexões e no êxtase de encantamento, cita a morte de cristo e começa a fazer ponderações sombrias sobre a vida.

o poema é uma espécie de justificativa aos demais do livro.  "nebulsosas" é o primeiro poema. 

no desfecho do poema"nebulosas," o sentimento de leveza e pureza dá lugar a uma visão um pouco mais pesada e melancólica da existência. de modo metalinguístico, o eu lírico confessa que então os versos ficaram tristes.

a presença dos triclínios faz contraste com a imensidão divina das nebulosas, ou seja, a pequenez da vida humana e seus luxos não alcançam a beleza e a energia das nebulosas.
as linhas finais, como "cortando as brumas glaciais do inverno" e "vão no sólio de deus rolar exânimes" mostram que a busca por compreensão e inspiração se esgota, resultando em resignação. a leveza do início transforma-se em um peso existencial, revelando que a pureza não resistiu às profundezas reflexivas do eu lírico. as nebulosas são símbolo de beleza e mistério, aqui. o caráter divino (cristão) é presente no poema, assim como em praticamente todo o livro. 
a visão final é de uma conexão com o divino, mas marcada por sacrifício e dor, ao invés da pureza intocada que aparece no começo.


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domingo, 19 de janeiro de 2025

opúsculo humanitário - nísia floresta brasileira augusta

               

          dionísia pinto lisboa  - -  nome oficial
      nísia floresta brasileira augusta  - -  pseudônimo

- "floresta" faz referência ao sítio onde nasceu (rio g do norte)
- "augusta" é o nome do marido falecido, "augusto"

filha do português dionísio pinto lisboa e da brasileira antônia clara freire, dionísia nasceu no rio grande do norte, em 1810. morreu na frança, em 1885. 

no início de "opúsculo humanitário", nísia expõe o modo como mulheres foram tratadas em épocas distantes, como na grécia, pérsia e egito, por exemplo, antes de cristo. passa pelos pensamentos de platão, sócrates, cita dario, safo, perictione (mãe de platão), aspasia, indo à idade média, chegando até -- mais recente --, a cornelia bororquia.
vale explicação: "cornelia bororquia" é nome de um livro anticlerical, do final do século 18, com subtítulo: "a verdadeira história da judith espanhola". o livro é de luiz gutierrez, um ex frade

entre os capítulos 1 e 7, apenas alemanha é citada de modo positivo, no que diz respeito ao modo como educam mulheres, vejam: 

"Os alemães (...) concederam à mulher privilégios reais, baseados na educação sólida desse povo por demais profundo e morigerado, para compreender toda a importância da mãe de famílias, da matrona esclarecida edificando os filhos e o sexo com exemplos de uma sã moral, (...) O legislador alemão, quando estabeleceu no casamento a igualdade entre os sexos, compreendeu, melhor que nenhum outro, a sabedoria do Eterno, doando ao homem e à mulher a mesma inteligência."  (cap 6)

ao tratar de sociedades como as citadas (grécia, alemanha etc), o "opúsculo" de nísia se esmera em citar figuras acadêmicas importantes destas sociedades, a maioria homens. com o reino unido não é diferente. shakespeare, bacon, raleigh e outros fazem fila no discurso de nísia ilustrando a visão laudatória da escritora sobre os ingleses. estamos no capítulo 8. vejam:

"O povo inglês (...) não podia deixar de facultar à mulher a liberdade e os meios do segui-lo nos progressos da civilização moderna. (...) Assim também, compreendendo melhor que as suas ilustradas vizinhas do continente a importância dos sagrados deveres de esposa e de mãe, a mulher inglesa não vê, como geralmente aquelas, no casamento um estado que as liberta do jugo de solteira, e lhes permite uma liberdade, de que nem sempre fazem bom uso. Pelo contrário, é neste novo estado que começa para ela a prática de todas as virtudes da vida doméstica. Pode dizer-se que o primeiro dever maternal e inato à mulher inglesa, a quem, a civilização nada tendo feito perder do sentimento que o ordena, não foi necessário um "Emilio" de Rousseau para indicar-lho. (...) A mulher Inglesa, educada nos severos princípios de uma sã e esclarecida moral, dá provas desde sua mais tenra mocidade de uma discrição e modesta altivez, que as mulheres das outras nações não lhe podem disputar." (cap 8)

nísia compara inglesas e francesas e detona a terra de rousseau. venera o modo de vida das mulheres britânicas. vejam a ironia com as francesas: "ilustradas vizinhas" e "liberdade de que nem sempre fazem bom uso". vale notar que o livro de rousseau trata da educação e a visão aí é iluminista. parece que nísia não se liga muito às liberdades expostas nos tempos após a revolução francesa. e mais: o final do século 18, a frança expôs uma necessidade de separar igreja de estado. como se vê, a fé católica de nossa escritora faz com que essa história toda de "libertè", "igualitè" e afins seja inferior à vida na terra de darwin.

os capítulos 11 e 12, por sua vez, admitem que a figura feminina tem seu destaque:

"Se a severidade de uma página da legislação francesa exclui a mulher da supremacia de que gozam as mulheres das duas nações de que falamos ultimamente, o império do espírito, em cujo trono ela se assenta como absoluta soberana, prodigamente a indeniza dessa parcialidade, depondo em suas mãos (...) os destinos dessa bela nação. (...) as virtuosas Maintenon, Antoinette e Adelaide, esclarecida conselheira de Luiz Philippe, tem dirigido, mais que os reis, o governo da França.(...) a mulher francesa não se limitou somente aos exemplos da coragem, que deu a Joanna d’Arc a glória de libertar a pátria do poder dos ingleses, (...) 

ao final do cap 13, a citação de michelet (1798-1874), sem contextualizar:

“Etre aimée, enfanter, puis enfanter moralement, élever l’homme, (ce temps barbare ne l’entend pas bien encore); voilá l’affaire de la femme"

tradução: Ser amada, dar à luz, depois dar à luz moralmente, elevar o homem (este tempo bárbaro não o entende bem ainda); eis o papel da mulher.

ou seja, procriar e ser submissa à figura masculina. 
a seguir, nísia trata da américa:

"Passemos à América, essa poderosa rainha que se apresenta por último no palco da civilização, grandiosamente ataviada de todos os ricos dons da natureza e pulsando-lhe no peito um coração superabundante de nobres e virginais sentimentos." 

repara que nosso continente é tratado rigorosamente na visão eurocêntrica: só se considera que existe américa após chegada das gentes europeias. triste isso. mas segue:

"Todos sabem que quanto mais ociosa é uma nação, tanto maior é o espírito de galanteio que a domina: os importantes trabalhos que ocupam os americanos do norte não lhes deixam tempo para a polidez dos franceses."

mais uma pancada nos franceses. e o que seria uma nação "ociosa" ?...
resposta: aquela que não foi invadida, colonizada por europeus... claro está que, indiretamente, o conceito de civilização mora na essência do viver europeu e nada resta aos nativos desta américa, a não ser obedecer e aceitar novos costumes e leis. desanimador.
segue:

"Esperamos somente que os zelosos operários do grande edifício da civilização, em nossa terra, atentem para os exemplos que a história apresenta, do quanto é essencial aos povos (...) o associarem a mulher a esse importante trabalho. (...) Entretanto sigamos o exemplo do pobre e corajoso explorador de nossas virgens florestas, exposto aqui e ali à mordedura de venenosos répteis, para rotear um campo, que outros terão de semear e colher-lhes os saborosos frutos.... (cap 18)

gente! a construção de uma sociedade boa, na concepção de nísia, é a de que a floresta é pra ser explorada mesmo. ponto. azar de quem vivia dela, desde as pinturas rupestres, cerca de 50 (cinquenta) mil anos atrás. olhem, difícil crer que -- neste livro -- nísia floresta estabeleça necessidade de respeito com nativos anteriores à chegada de europeus, sinto muito. 

agora preparem-se para este trecho que cita família indígenas:

"Isto posto, indaguemos, à vista do estado atual da educação das nossas brasileiras, quais os meios que se têm empregado, há mais de três séculos, para promover o seu desenvolvimento, em ordem a conseguir os resultados felizes que dela se deve esperar, quando dirigida por instituições sábias e liberais."

pausa: brasileiras existem há três séculos?? é isso?? sim, é o que está escrito, ou seja, contando no dedo pra ficar claro: séculos 16, 17, 18 e pedacinho do 19. e os 40 mil anos anteriores com famílias indígenas e suas histórias? nísia não considera importante. triste né? segue:

"Retiremos por agora os olhos das tristes páginas de nossa história concernentes à situação da mulher indígena, depois que o farol do cristianismo veio esclarecer esta mais deliciosa porção do novo mundo. Nós a analisaremos em lugar competente e com o coração profundamente compenetrado da sua sorte! Tratemos primeiramente das mulheres a quem os homens da civilização, entre nós, denominam brasileiras, isto é, as mulheres não indígenas, que nascem de famílias livres, ou aquelas que a bondade dos pais resgata, na pia batismal, do triste selo da escravidão!"

por "esclarecer", entende-se a violação de cultura e imposição do cristianismo e o que mais se sabe que veio junto. aqui, civilidade significa a vida dos brancos europeus, ponto. existe sim a ressalva da escravização, mas repara novamente: a negritude escravizada será salva depois de se converter ao cristianismo, na "pia batismal". ou seja, nada de respeitar as tradições afro. esquece.

mais sobre a mulher indígena, no brasil:

"Quereis ver a esposa terna, previdente, dedicada e fiel? Contemplai a célebre Paraguassú captando para o esposo as simpatias e os favores da sua tribo, ajudando-o em sua missão civilizadora, e civilizando-se ela mesma para amenizar-lhe os dias, privado como se achava ele das comodidades europeias. Circunspecta e fiel aos seus deveres, quando passou a França e apresentou-se na corte de Caterina de Médicis, (...) ela atraiu a admiração de todos, por seu tipo americano, suas graças ingênuas e sua dedicada afeição pelo esposo, com quem voltou à Bahia, no mútuo e constante empenho de utilizar aquela nascente colônia. Quereis admirar o amor em toda a sua espontaneidade e na grandeza da abnegação pessoal? Vede Moema; a sensível e infeliz Moema, lançando-se ao mar, seguindo a nado o navio que lhe levava o homem por quem só prezava a existência e por quem queria morrer não podendo com ele viver! ..." (cap 59)

socorro. todos conhecem a história de paraguaçu (assim, com cedilha, como manda o figurino) e do navegante português diogo álvares correa (apelidado "caramuru"). o caso amoroso entre ambos se dá no século 16, bahia. ela é tupinambá. foi rebatizada "catarina álvares paraguaçu". moema seria sua rival, digamos. se bem que no caso de moema, há quem afirme que ela é ficção, que só existe no livro de durão. aconselho você que me lê a ir em "meus livros", aqui acima. clica em "letra líquida". lá, trato dessa questão de moema e o que o sentimento amoroso pode fazer com alguém.

no capítulo 21, contudo, há espaço para ilustração de uma situação prejudicial à vida das mulheres no mundo acadêmico, que é de uma portuguesa, no século 16:

"Citaremos Públia Hortênsia de Castro (1848-95), que, sob os trajes masculinos, frequentou com seu irmão a Universidade de Coimbra, onde obteve os grandes conhecimentos, que excitaram a admiração dos homens de sua época, inclusive Filipe II. 

vejam o início do capítulo 50:

"Boas mães e esposas fiéis, eis aqui duas qualidades preciosas comuns às nossas indígenas, dois vínculos santos que ligam e enobrecem a família, vínculos que sabem, no estado selvagem, respeitar apresentando exemplos que bem merecem ser considerados pelas mulheres civilizadas de todos os países."

os elogios à mulher indígena são inerentes à sua postura submissa, não só a um homem, mas a uma cultura que não era a dela. parece que o sonho de toda figura humana -- segundo a escrita de nísia -- é viver como europeus. 

já o capítulo 60 traz alguma luz da coerência social:

"Quando, por sábio decreto de um rei justo e humano, a revoltante escravidão dos nossos indígenas foi abolida, e a introdução dos infelizes africanos veio substituir o vergonhoso tráfico, que em todo o Brasil se fazia com aqueles, julgou-se conveniente procurar exterminar os que acabavam de libertar-se, de direito que não de fato, porquanto a perseguição continuou debaixo de outro caráter; e ainda em nossos dias, com horror o sabemos! Caçam-se os selvagens em suas matas como animais ferozes, para apreendê-los e arrancar-lhes as mulheres e filhos, que se retêm e fazem servir como escravos... em muitas roças e casas do interior das províncias!"

parece contraditório -- e é -- pregar contra a escrvização de indígenas, ao mesmo tempo que se acredita apenas no catolicismo como um bem para essa gente... agora, no capítulo 61, lemos:

"Do pouco que havemos expandido relativamente às qualidades naturais da mulher indígena, queremos concluir que ela é digna de ocupar outra posição em nossa terra; e que o desprezo, com que foi sempre, e continua a ser olhada a sua raça pelas nossas outras populações, é um abuso antinacional, anticristão, que os nossos governantes e o nosso clero devem fazer desaparecer, empregando, por bem da pátria e da igreja, meios mais próprios e seguros para consegui-lo. A humanidade e a civilização reclamam imperiosamente deles convenientes medidas para arrancar essa pura, digna porção do povo brasileiro à vida em que vegeta, e torná-la útil como incontestavelmente pode ser a uma e a outra."

pois é... indígenas "vegetam"; indígenas devem ser arrancados de onde estão para o bem da pátria.. deveriam ser "úteis". ahã.  

o capítulo 62 é o último e termina assim, com um pedido aos governantes do brasil:

"Não vos diz a consciência que a mulher nascida nesta vigorosa terra superabundante de magnificências naturais, respirando sob um céu radiante, no meio da poesia de tão admirável natureza, não se pode limitar ao papel que tem até hoje representado? Não sentis que a sua missão nesta parte da América civilizada (...) não deve ser a de recolher factícios triunfos tributados à matéria, quando o seu espírito pode e deve pretender a elevar-se a mais dignas e nobres aspirações promovendo na terra o bem do seu semelhante? À providência, colocando-vos tão vantajosamente, pareceu chamar-vos a comandar um dia os destinos de toda a América do Sul, assim como aos filhos da União os de toda a América do Norte. Eia! Se, com mais rico solo do que o dos Estados Unidos, faltou-vos a mola principal – a educação, para a par deles marchardes, preparai-vos ao menos a satisfazer dignamente a parte essencial da grande missão que vos fora destinada. Educai para isto a mulher, e com ela marchai avante na imensa via do progresso, à glória que leva o renome dos povos à mais remota posteridade!"
                                                                [  fim  ]
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