opúsculo humanitário - nísia floresta brasileira augusta

               

       dionísia pinto lisboa  - -  nome oficial
    nísia floresta brasileira augusta  - -  pseudônimo

- "floresta" faz referência ao sítio onde nasceu
- "augusta" é o nome do marido falecido, "augusto"

filha do português dionísio pinto lisboa e da brasileira antônia clara freire, dionísia nasceu no rio grande do norte, em 1810. morreu na frança, em 1885. 

no início de "opúsculo humanitário", nísia expõe o modo como mulheres foram tratadas em épocas distantes, como na grécia, pérsia e egito, por exemplo, antes de cristo. passa pelos pensamentos de platão, sócrates, cita dario, safo, perictione (mãe de platão), aspasia, indo à idade média, chegando até -- mais recente --, a cornelia bororquia.
vale explicação: "cornelia bororquia" é nome de um livro anticlerical, do final do século 18, com subtítulo: "a verdadeira história da judith espanhola". o livro é de luiz gutierrez, um ex frade

entre os capítulos 1 e 7, apenas alemanha é citada de modo positivo, no que diz respeito ao modo como educam mulheres, vejam: 

"Os alemães (...) concederam à mulher privilégios reais, baseados na educação sólida desse povo por demais profundo e morigerado, para compreender toda a importância da mãe de famílias, da matrona esclarecida edificando os filhos e o sexo com exemplos de uma sã moral, (...) O legislador alemão, quando estabeleceu no casamento a igualdade entre os sexos, compreendeu, melhor que nenhum outro, a sabedoria do Eterno, doando ao homem e à mulher a mesma inteligência."  (cap 6)

ao tratar de sociedades como as citadas (grécia, alemanha etc), o "opúsculo" de nísia se esmera em citar figuras acadêmicas importantes destas sociedades, a maioria homens. com o reino unido não é diferente. shakespeare, bacon, raleigh e outros fazem fila no discurso de nísia ilustrando a visão laudatória da escritora sobre os ingleses. estamos no capítulo 8. vejam:

"O povo inglês (...) não podia deixar de facultar à mulher a liberdade e os meios do segui-lo nos progressos da civilização moderna. (...) Assim também, compreendendo melhor que as suas ilustradas vizinhas do continente a importância dos sagrados deveres de esposa e de mãe, a mulher inglesa não vê, como geralmente aquelas, no casamento um estado que as liberta do jugo de solteira, e lhes permite uma liberdade, de que nem sempre fazem bom uso. Pelo contrário, é neste novo estado que começa para ela a prática de todas as virtudes da vida doméstica. Pode dizer-se que o primeiro dever maternal e inato à mulher inglesa, a quem, a civilização nada tendo feito perder do sentimento que o ordena, não foi necessário um "Emilio" de Rousseau para indicar-lho. (...) A mulher Inglesa, educada nos severos princípios de uma sã e esclarecida moral, dá provas desde sua mais tenra mocidade de uma discrição e modesta altivez, que as mulheres das outras nações não lhe podem disputar." (cap 8)

nísia compara inglesas e francesas e detona a terra de rousseau. venera o modo de vida das mulheres britânicas. vejam a ironia com as francesas: "ilustradas vizinhas" e "liberdade de que nem sempre fazem bom uso". vale notar que o livro de rousseau trata da educação e a visão aí é iluminista. parece que nísia não se liga muito às liberdades expostas nos tempos após a revolução francesa. e mais: o final do século 18, na frança, expôs uma necessidade de separar igreja de estado. como se vê, a fé católica de nossa escritora faz com que essa história toda de "libertè", "igualitè" e afins seja inferior à vida na terra de darwin.

os capítulos 11 e 12, por sua vez, admitem que a figura feminina tem seu destaque:

"Se a severidade de uma página da legislação francesa exclui a mulher da supremacia de que gozam as mulheres das duas nações de que falamos ultimamente, o império do espírito, em cujo trono ela se assenta como absoluta soberana, prodigamente a indeniza dessa parcialidade, depondo em suas mãos (...) os destinos dessa bela nação. (...) as virtuosas Maintenon, Antoinette e Adelaide, esclarecida conselheira de Luiz Philippe, tem dirigido, mais que os reis, o governo da França.(...) a mulher francesa não se limitou somente aos exemplos da coragem, que deu a Joanna d’Arc a glória de libertar a pátria do poder dos ingleses, (...) 

ao final do cap 13, a citação de michelet (1798-1874), sem contextualizar:

“Etre aimée, enfanter, puis enfanter moralement, élever l’homme, (ce temps barbare ne l’entend pas bien encore); voilá l’affaire de la femme"

tradução: Ser amada, dar à luz, depois dar à luz moralmente, elevar o homem (este tempo bárbaro não o entende bem ainda); eis o papel da mulher.

ou seja, procriar e ser submissa à figura masculina. 
a seguir, nísia trata da américa:

"Passemos à América, essa poderosa rainha que se apresenta por último no palco da civilização, grandiosamente ataviada de todos os ricos dons da natureza e pulsando-lhe no peito um coração superabundante de nobres e virginais sentimentos." 

repara que nosso continente é tratado rigorosamente na visão eurocêntrica: só se considera que existe américa após chegada das gentes europeias. triste isso. mas segue:

"Todos sabem que quanto mais ociosa é uma nação, tanto maior é o espírito de galanteio que a domina: os importantes trabalhos que ocupam os americanos do norte não lhes deixam tempo para a polidez dos franceses."

mais uma pancada nos franceses. e o que seria uma nação "ociosa" ?...
resposta: aquela que não foi invadida, colonizada por europeus... claro está que, indiretamente, o conceito de civilização mora na essência do viver europeu e nada resta aos nativos desta américa, a não ser obedecer e aceitar novos costumes e leis. desanimador.
segue:

"Esperamos somente que os zelosos operários do grande edifício da civilização, em nossa terra, atentem para os exemplos que a história apresenta, do quanto é essencial aos povos (...) o associarem a mulher a esse importante trabalho. (...) Entretanto sigamos o exemplo do pobre e corajoso explorador de nossas virgens florestas, exposto aqui e ali à mordedura de venenosos répteis, para rotear um campo, que outros terão de semear e colher-lhes os saborosos frutos.... (cap 18)

gente! a construção de uma sociedade boa, na concepção de nísia, é a de que a floresta é pra ser explorada mesmo. ponto. azar de quem vivia dela, desde as pinturas rupestres, cerca de 50 (cinquenta) mil anos atrás. olhem, difícil crer que -- neste livro -- nísia floresta estabeleça necessidade de respeito com nativos anteriores à chegada de europeus, sinto muito. 

agora preparem-se para este trecho que cita família indígenas:

"Isto posto, indaguemos, à vista do estado atual da educação das nossas brasileiras, quais os meios que se têm empregado, há mais de três séculos, para promover o seu desenvolvimento, em ordem a conseguir os resultados felizes que dela se deve esperar, quando dirigida por instituições sábias e liberais."

pausa: brasileiras existem há três séculos?? é isso?? sim, é o que está escrito, ou seja, contando no dedo pra ficar claro: séculos 16, 17, 18 e pedacinho do 19. e os 40 mil anos anteriores com famílias indígenas e suas histórias? nísia não considera importante. triste né? segue:

"Retiremos por agora os olhos das tristes páginas de nossa história concernentes à situação da mulher indígena, depois que o farol do cristianismo veio esclarecer esta mais deliciosa porção do novo mundo. Nós a analisaremos em lugar competente e com o coração profundamente compenetrado da sua sorte! Tratemos primeiramente das mulheres a quem os homens da civilização, entre nós, denominam brasileiras, isto é, as mulheres não indígenas, que nascem de famílias livres, ou aquelas que a bondade dos pais resgata, na pia batismal, do triste selo da escravidão!"

por "esclarecer", entende-se a violação de cultura e imposição do cristianismo e o que mais se sabe que veio junto. aqui, civilidade significa a vida dos brancos europeus, ponto. existe sim a ressalva da escravização, mas repara novamente: a negritude escravizada será salva depois de se converter ao cristianismo, na "pia batismal". ou seja, nada de respeitar as tradições afro. esquece.

mais sobre a mulher indígena, no brasil:

"Quereis ver a esposa terna, previdente, dedicada e fiel? Contemplai a célebre Paraguassú captando para o esposo as simpatias e os favores da sua tribo, ajudando-o em sua missão civilizadora, e civilizando-se ela mesma para amenizar-lhe os dias, privado como se achava ele das comodidades europeias. Circunspecta e fiel aos seus deveres, quando passou a França e apresentou-se na corte de Caterina de Médicis, (...) ela atraiu a admiração de todos, por seu tipo americano, suas graças ingênuas e sua dedicada afeição pelo esposo, com quem voltou à Bahia, no mútuo e constante empenho de utilizar aquela nascente colônia. Quereis admirar o amor em toda a sua espontaneidade e na grandeza da abnegação pessoal? Vede Moema; a sensível e infeliz Moema, lançando-se ao mar, seguindo a nado o navio que lhe levava o homem por quem só prezava a existência e por quem queria morrer não podendo com ele viver! ..." (cap 59)

socorro. todos conhecem a história de paraguaçu (assim, com cedilha, como manda o figurino) e do navegante português diogo álvares correa (apelidado "caramuru"). o caso amoroso entre ambos se dá no século 16, bahia. ela é tupinambá. foi rebatizada "catarina álvares paraguaçu". moema seria sua rival, digamos. se bem que no caso de moema, há quem afirme que ela é ficção, que só existe no livro de durão. aconselho você que me lê a ir em "meus livros", aqui acima. clica em "letra líquida". lá, trato dessa questão de moema e o que o sentimento amoroso pode fazer com alguém.

no capítulo 21, contudo, há espaço para ilustração de uma situação prejudicial à vida das mulheres no mundo acadêmico, que é de uma portuguesa, no século 16:

"Citaremos Públia Hortênsia de Castro (1848-95), que, sob os trajes masculinos, frequentou com seu irmão a Universidade de Coimbra, onde obteve os grandes conhecimentos, que excitaram a admiração dos homens de sua época, inclusive Filipe II. 

vejam o início do capítulo 50:

"Boas mães e esposas fiéis, eis aqui duas qualidades preciosas comuns às nossas indígenas, dois vínculos santos que ligam e enobrecem a família, vínculos que sabem, no estado selvagem, respeitar apresentando exemplos que bem merecem ser considerados pelas mulheres civilizadas de todos os países."

os elogios à mulher indígena são inerentes à sua postura submissa, não só a um homem, mas a uma cultura que não era a dela. parece que o sonho de toda figura humana -- segundo a escrita de nísia -- é viver como europeus. 

já o capítulo 60 traz alguma luz da coerência social:

"Quando, por sábio decreto de um rei justo e humano, a revoltante escravidão dos nossos indígenas foi abolida, e a introdução dos infelizes africanos veio substituir o vergonhoso tráfico, que em todo o Brasil se fazia com aqueles, julgou-se conveniente procurar exterminar os que acabavam de libertar-se, de direito que não de fato, porquanto a perseguição continuou debaixo de outro caráter; e ainda em nossos dias, com horror o sabemos! Caçam-se os selvagens em suas matas como animais ferozes, para apreendê-los e arrancar-lhes as mulheres e filhos, que se retêm e fazem servir como escravos... em muitas roças e casas do interior das províncias!"

parece contraditório -- e é -- pregar contra a escrvização de indígenas, ao mesmo tempo que se acredita apenas no catolicismo como um bem para essa gente... agora, no capítulo 61, lemos:

"Do pouco que havemos expandido relativamente às qualidades naturais da mulher indígena, queremos concluir que ela é digna de ocupar outra posição em nossa terra; e que o desprezo, com que foi sempre, e continua a ser olhada a sua raça pelas nossas outras populações, é um abuso antinacional, anticristão, que os nossos governantes e o nosso clero devem fazer desaparecer, empregando, por bem da pátria e da igreja, meios mais próprios e seguros para consegui-lo. A humanidade e a civilização reclamam imperiosamente deles convenientes medidas para arrancar essa pura, digna porção do povo brasileiro à vida em que vegeta, e torná-la útil como incontestavelmente pode ser a uma e a outra."

pois é... indígenas "vegetam"; indígenas devem ser arrancados de onde estão para o bem da pátria.. deveriam ser "úteis". ahã.  

o capítulo 62 é o último e termina assim, com um pedido aos governantes do brasil:

"Não vos diz a consciência que a mulher nascida nesta vigorosa terra superabundante de magnificências naturais, respirando sob um céu radiante, no meio da poesia de tão admirável natureza, não se pode limitar ao papel que tem até hoje representado? Não sentis que a sua missão nesta parte da América civilizada (...) não deve ser a de recolher factícios triunfos tributados à matéria, quando o seu espírito pode e deve pretender a elevar-se a mais dignas e nobres aspirações promovendo na terra o bem do seu semelhante? À providência, colocando-vos tão vantajosamente, pareceu chamar-vos a comandar um dia os destinos de toda a América do Sul, assim como aos filhos da União os de toda a América do Norte. Eia! Se, com mais rico solo do que o dos Estados Unidos, faltou-vos a mola principal – a educação, para a par deles marchardes, preparai-vos ao menos a satisfazer dignamente a parte essencial da grande missão que vos fora destinada. Educai para isto a mulher, e com ela marchai avante na imensa via do progresso, à glória que leva o renome dos povos à mais remota posteridade!"
                                                                [  fim  ]
   . . . . . .  .  .  .   .   .    .   .
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Comentários

  1. Boa noite, respondi à sua pergunta no meu blog. O soneto realmente não aparece no livro Nebulosas. Mas aparece na coletânea de Sonetos de Laudelino Freire, publicado em 1913, quando a Narcisa Amália de Campos ainda estava viva. Coloquei na minha resposta o link para o livro. Está no Interenet Archives. Um grande abraço, Ladyce

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