o caminho da arte
já fui um quadro empoeirado, esquecido na parede rachada de um casarão mofado. se bem que não era exatamente um casarão, porque não havia capelinha no quintal, nem piano dentro da sala. era só um terreno grande, piso de tijolo, coberto de telhas marrons. muita gente morou ali. gerações de plantadores de cana, pescadores, donos de supermercado, um casal de encantadores de serpente aposentados, um youtuber com depressão e duas bailarinas cegas. todos entraram, saíram, mas eu fiquei. quadro. parede, preguinho, pó. fiquei.
ninguém sabia quem me pintara nem o que exatamente eu retratava porque, aliás, mudava o tempo todo. pela manhã, aparecia um rosto deformado; à tarde, um campo florido; à noite, um bicho esquisito querendo sair de dentro da tela, como se o óleo ainda estivesse fresco. a moldura era circular o que facilitava a crença em supostas mudanças na imagem. diziam que quem passava tempo demais olhando para mim começava a ouvir sussurros, ou, pior, enxergar partes de si mesmo no quadro. era nojento.
houve quem jurou que a pintura era, na verdade, uma janela para outro lugar – daí ponderei que poderia ficar parecido com aquele livro do lewis carroll, da menina que cresce e diminui de tamanho, então, achei melhor endurecer feito um afresco. dito e feito: quem punha a mão pra saber se era mesmo passagem pra outra dimensão, errava, porque não dava pra atravessar. tentaram, mas não conseguiram. jogavam papel amassado, tampa de garrafa. até cuspe. com o tempo, cansaram, fui ficando esquecido, as traças me visitando. o que eu tinha, era isso: traças e um ou outro pesadelo de sabiá que entrava pela fresta da porta encarquilhada.
até que um dia, uma senhora de chapéu lilás entrou pela casa. dava pra ler seus pensamentos, porque, como sabem, sou arte. e o que havia? aquela senhora reconheceu o lugar onde algum antepassado teria vivido parte da infãncia, décadas e décadas antes. estava absorta e querendo recuperar alguma coisa que não vinha. resolveu limpar a parede, achando que eu parte do que havia ali era sujeira. a sujeira era eu. passou pano seco, reclamou da poeira, e bem ali, quando esfregou no canto, ouviu um estalo. rachaduras. parede, chão porta. trincas iam nascendo. teimosa, ela não correu. pegou uma lupa da bolsa e ficou encarando meu centro, onde se formava uma espiral esquisita, meio verde, meio preta, como um buraco sem fundo. o tremor havia cessado e ela, ainda de chapéu lilás, continuava sua expedição sobre meus traços e talvez até cores. riu baixinho, mexendo os beiços: “que merda é essa?”
depois disso, a parede inteira começou a transpirar, como se estivesse com febre. e eu? me desfiz, escorri feito tinta fresca, me espalhei pelo chão até virar uma poça oleosa, cores difusas. antes de desaparecer, deixei só um detalhe pra trás: a pequena assinatura no rodapé, algo meio torto, que dizia "arte viva"
Comentários
Postar um comentário
comente --