canção de matar - sophia de mello bryener - comentário
Canção de matar
Do dia nada sei O teu amor em mim Está como o gume De uma faca nua Ele me atravessa E atravessa os dias Ele me divide
Tudo o que em mim vive Traz dentro uma faca O teu amor em mim Que por dentro me corta Com uma faca limpa Me libertarei Do teu sangue que põe Na minha alma nódoas
O teu amor em mim De tudo me separa No gume de uma faca O meu viver se corta Do dia nada sei E a própria noite azul Me fecha a sua porta Do dia nada sei Com uma faca limpa Me libertarei.
[ O cristo cigano, 1961, Sophia de M B Andresen ]
aqui, a ideia da morte do cigano -- confirmada nos dois poemas finais do livro -- é ressaltada. a faca que mata acaba dividindo o eu lírico. traz à tona a dualidade: dor e purificação. a faca é elemento de cisão, dor. faca é metáfora de amor e símbolo da morte. há uma musicalidade melancólica nos versos, reforçada pela repetição de "do dia nada sei", sugerindo um estado de suspensão, de incerteza ou alienação diante da passagem do tempo.
parece a fala do escultor, desejando terminar sua busca. ele usará a faca e se libertará do fardo que é buscar um rosto em agonia.
a ideia de um amor que "corta por dentro" remete a uma relação que ao mesmo tempo fere e purifica. a faca pode simbolizar tanto o sofrimento quanto a ideia de libertação. a expressão "faca limpa", ao final traz um tom ritualístico, como se o ato de cortar fosse necessário. é o corte assassino.
importante: sophia breyner encontrou-se com joão cabral de melo neto, em sevilha, onde vivia o brasileiro que era também diplomata. lá, ela ouviu do próprio joão a lenda de que o escultor espanhol francisco gijón, no final do século 17, recebera uma encomenda de uma estátua de um cristo em agonia. para este fim, o tal artista buscou uma cena que pudesse ver alguém morrendo para conseguir inspiração e fazer seu trabalho. para isso, presenciou o esfaqueamento de um cigano e, assim, obteve material visual de que precisava. depois de pronta a peça de madeira (foto acima), muita gente reconheceu o cigano -- apelidado "cachorro" -- e passaram então a chamar a capela onde a escultura está de "capela do cachorro". a obra é o "cristo de la expiración" ou "el cachorro de triana".
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