nebulosas - livro de narcisa amália - comentário

 




narcisa amália de campos (1852-1924)
nasceu em são joão da barra, rio de janeiro e faleceu na cidade do rio de janeiro

"nebulosas": poesias românticas com algum teor crítico. isso a aproxima do que fez castro alves, na mesma época, ou seja, na segunda metade do século 19. o livro de narcisa é de 1872. 
o livro apresenta três partes: a primeira com um poema apenas, "nebulosas"; a segunda com 27 poemas e a terceira, 16 poemas. o texto que abre esta última parte é justamente "castro alves".
no geral, o que chama atenção do leitor, hoje, é o excesso de termos raros, uma escolha lexical que pode cansar o leitor apressado, dificultando a interpretação, num primeiro momento. é preciso estar sempre próximo a um dicionário.

no conjunto, a obra "nebulosas" é de lirismo denso, místico, lavado de cristianismo e melancolias. a natureza é constantemente citada como cúmplice das emoções, em muitos poemas. o livro "nebulosas" também traz atmosfera contemplativa e, muitas vezes, mora aí o elemento divino. recheado de adjetivos, é puro romantismo.
o aprimoramento técnico no trabalho com a linguagem chama atenção justamente num universo em que o feminino pouco transitava: o mundo erudito (e masculino) das letras, século 19.

veja o poema "nebulosas" que abre o livro:


            NEBULOSAS

 No seio majestoso do infinito,

– Alvos cisnes do mar da imensidade –

Flutuam tênues sombras fugitivas

Que a multidão supõe densas caligens,

E a ciência reduz a grupos válidos;

Vejo-as surgir à noite, entre os planetas,

Como visões gentis à flux dos sonhos;

E as esferas que curvam-se trementes

Sobre elas desfolhando flores d'ouro,

Roubam-me instantes ao sofrer recôndito!

Costumei-me a sondar-lhe os mistérios

Desde que um dia a flâmula da ideia

Livre, ao sopro do gênio, abriu-me o templo

Em que fulgura a inspiração em ondas;

A seguir-lhes no espaço as longas clâmides

Orladas de incendidos meteoros;

E quando da procela o tredo arcanjo

Desdobra n'amplidão as negras asas,

Meu ser pelo teísmo desvairado

Da loucura debruça-se no pélago

Sim! São elas a mais gentil feitura

Que das mãos do Senhor há resvalado!

Sim! De seus seios na dourada urna,

A piedosa lágrima dos anjos,

Ligeira se converte em astro esplêndido!

No momento em que o mártir do calvário

A cabeça pendeu no infamo lenho,

A voz do Criador, em santo arrojo,

No macio frouxel de seus fulgores

Ao céu arrebatou-Ihe o calmo espírito!

Quando desci mais tarde, deslumbrada

De tanta luz e inspiração, ao vale

Que pelo espaço abandonei sorrindo

E senti calcinar-me as débeis plantas

Do deserto as areias ardentíssimas:

Ao fugir das cendais que estende a noite

Sobre o leito da terra adormecida,

Fitei chorando a aurora que surgia!

E - ave de amor - a solidão dos ermos

Povoei de gorjeios melancólicos!..

Assim nasceram os meus tristes versos,

Que do mundo falaz fogem às pompas!

Não dormem eles sob os áureos tetos

Das térreas potestades, que falecem

De morbidez nos flácidos triclínios!

Cortando as brumas glaciais do inverno

Adejam nas estâncias consteladas

Onde elas pairam; e à luz da liberdade

Devassando os mistérios do infinito,

Vão no sólio de Deus rolar exânimes...

                                

     notas_

  frouxel – qualidade daquilo que é macio; penugem macia

  flux  -  abundamente; não deixar escapar nada

  infamo – difamado; desonrado

  procela  -  tempestade

  tredo  -  falso; traidor

  pélago – espécie de abismo oceânico

  triclínio  - roma antiga: sala de jantar com três leitos (similares a               sofás) - eram símbolo de luxo e ociosidade

  cendais - tecidos finos e transparentes

  clâmide – manto, na grécia antiga, que se prendia com um broche

  exânime  -  quase morto; moribundo

  sólio  - acento elevado típico de uso real

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poema "nebulosas" apresenta o eu lírico em dois momentos distintos: no início, a comparação do céu estrelado com "alvos cisnes do mar da imensidade" traz sensações de leveza e beleza etérea. a imagem dos cisnes sugere movimento gracioso e harmonia. num outro momento, embebida nas reflexões e no êxtase de encantamento, cita a morte de cristo e começa a fazer pnderações sombrias sobre a vida.

o tema principal é a contemplação do universo.

no desfecho do poema"nebulosas," o sentimento de leveza e pureza dá lugar a uma visão um pouco mais pesada e melancólica da existência. de modo metalinguístico, o eu lírico confessa que então os versos ficaram tristes.

a presença dos triclínios faz contraste com a imensidão divina das nebulosas, ou seja, a pequenez da vida humana e seus luxos não alcançam a beleza e a energia das nebulosas.
as linhas finais, como "cortando as brumas glaciais do inverno" e "vão no sólio de deus rolar exânimes" mostram que a busca por compreensão e inspiração se esgota, resultando em resignação. a leveza do início transforma-se em um peso existencial, revelando que a pureza não resistiu às profundezas reflexivas do eu lírico. as nebulosas são símbolo de beleza e mistério, aqui. o caráter divino (cristão) é presente no poema, assim como em praticamente todo o livro. 
a visão final é de uma conexão com o divino, mas marcada por sacrifício e dor, ao invés da pureza intocada que aparece no começo.


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