Chora, disfarça e chora Aproveita a voz do lamento Que já vem a aurora A pessoa que tanto querias Antes mesmo de raiar o dia Deixou o ensaio por outra Ó triste senhora Disfarça e chora Todo o pranto tem hora E eu vejo seu pranto cair No momento mais certo Olhar, gostar só de longe Não faz ninguém chegar perto E o seu pranto, ó triste senhora Vai molhar o deserto Chora, disfarça e chora
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samba critica com algum escárnio o amor platônico de uma senhora por alguém. este objeto do desejo acaba indo para outra pessoa. "deixar o ensaio" pode significar metaforicamente, ensaio de escola de samba, ou seja, o sambista mudou de escola antes do carnaval; ou então: seu amor se foi antes da realização amorosa desejada... o que gerou choro. repare a figura de linguagem hipérbole: lágrimas vão molhar o deserto. é demais. a letra dá uma lição à senhora triste: "gostar de longe" não resolve. cartola foi um dos fundadores da escola de samba estação primeira de mangueira. o apelido "cartola", veio dos tempos em que trabalhou como pedreiro e, para proteger-se, usava chapéu.
[ ilustração de di cavalcanti para drummond, anos 1920 ]
drummond tem um poema despretensioso, desses que só funcionam quando a gente lê os outros do mesmo livro. enfm, chama-se "papai noel às avessas". nele, o leitor acompanha a entrada de um papai noel numa casa humilde e ele sai de lá carregando os brinquedos das crianças. o texto saiu no jornal, pela primeira vez em 1927. di cavalcanti gostou e fez desenho. pouco tempo depois, em 1930, o poema seria publicado em "alguma poesia".
"papai noel às avessas" ilustraria a vontade do poeta de expor mazelas sociais e situações do cotidiano de vidas urbanas. o homem que entrou na casa queria um tanto de alegria. queria os brinquedos.
ame-se mais, dizem os animadores de neurônio alheio. goste-se. confie em si mesmo apenas... etc etc... esse papai noel larápio do texto realmente pensou mais em si. quis presentear-se. entrou pela casa e, mais do que algum relógio, roupas, dinheiro, ele levou brinquedos.
seria uma criança tardia? um saltimbanco maligno? alguém deprimido querendo diversão? é o que acontece numa relação intensa: um fica com os prazeres do outro, não é assim? ficar com alegria de alguém é crime? papai noel às avessas não está aí pra ser símbolo do ladrãozinho. ele fez o óbvio. fez o que todo mundo crê que deveria fazer: pensar em si. mas... se quiserem chamar esse papai noel de simples ladrão, então tá.
não vejo graça nesse lance de simplesmente gostar-se mais e ponto, se o que a gente quer é o outro, se o que a gente quer é o gozo compartilhado.
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leia o poema todo:
Papai Noel entrou pela porta dos fundos (no Brasil as chaminés não são praticáveis), entrou cauteloso que nem marido depois da farra. Tateando na escuridão torceu o comutador e a eletricidade bateu nas coisas resignadas, coisas que continuavam coisas no mistério do Natal. Papai Noel explorou a cozinha com olhos espertos, achou um queijo e comeu.
Depois tirou do bolso um cigarro que não quis acender. Teve medo talvez de pegar fogo nas barbas postiças (no Brasil os Papai-Noéis são todos de cara raspada) e avançou pelo corredor branco de luar. Aquele quarto é o das crianças Papai entrou compenetrado. Os meninos dormiam sonhando outros natais muito mais lindos mas os sapatos deles estavam cheinhos de brinquedos soldados mulheres elefantes navios e um presidente de república de celulóide. Papai Noel agachou-se e recolheu aquilo tudo no interminável lenço vermelho de alcobaça. Fez a trouxa e deu o nó, mas apertou tanto que lá dentro mulheres elefantes soldados presidente brigavam [ por causa do aperto.
Os pequenos continuavam dormindo. Longe um galo comunicou o nascimento de Cristo. Papai Noel voltou de manso para a cozinha, apagou a luz, saiu pela porta dos fundos. Na horta, o luar de Natal abençoava os legumes.
SEGUE NESTE SONETO A MÁXIMA DE BEM VIVER QUE É ENVOLVER-SE NA CONFUSÃO DOS NÉSCIOS PARA VIVER MELHOR A VIDA
Carregado de mim ando no mundo, E o grande peso embarga-me as passadas, Que como ando por vias desusadas, Faço o peso crescer, e vou-me ao fundo.
O remédio será seguir o imundo Caminho, onde dos mais vejo as pisadas, Que as bestas andam juntas mais ornadas Do que anda só o engenho mais profundo.
Não é fácil viver entre os insanos, Erra, quem presumir, que sabe tudo, Se o atalho não soube dos seus danos.
O prudente varão há de ser mudo, Que é melhor neste mundo o mar de enganos Ser louco co's demais, que só, sisudo.
Gregório de Matos, século 17, Bahia
poeta está decidido a ir na contramão da lógica conservadora e unir-se aos chamados "néscios" -- como diz o título -- ou seja, juntar-se aos idiotas, ignorantes, loucos. ter andado por vias desusadas trouxe peso ao eu lírico. significa que o poeta pecou demais. remédio? resposta na segunda estrofe: seguir o caminho sujo mesmo. nele, neste caminho, há mais bestas e elas ficam bem ornadas juntas. ao final, destaca: melhor a companhia da gentalha, dos loucos, do que ser um sério (sisudo), ajuizado solitário. muitas vezes já me senti como nos primeiros versos de gregório. não que as "vias desusadas" fossem as do crime, as da maldade explícita, eram vias de mim mesmo. as vias da busca do que era o amar. meio tarde, aprendi que amor pleno era invenção da literatura, a vida não tem clichê. nessa procura de um eixo entre amor possível e realidade tomei muito coice. apelidos, galhofa, ironias de todo tipo, por conta dessa ou daquela postura mais sensível. no acerto ou nas besteiras continuei debaixo de vaia. abandono, hipocrisias e praticamente nenhum perdão. nesse quesito compreensão do amar tenho sido um fracasso. esse gregório aí tem toda razão.
elza é fräulein. a senhorita. 35 anos, cultura alemã. o livro: "amar, verbo intransitivo" (mário de andrade). elza é professora de piano e vai, nesta história, ter a função de ser a iniciadora amorosa do jovem carlos alberto, 15 anos. é o romance de mário é de 1927. virgília é a não menos famosa amante de cubas, lá em machado de assis. e helena vem do século 20, no livro "três mulheres de três pppês", do paulo emílio, um dos melhores que já li. ambas carregam um protagonismo ímpar, dado o contexto de suas aparições: virgília em fins do século 19 e helena pela década de 1930. saber mais? veja o vídeo abaixo.
Sim, Deve haver o perdão Para mim Senão nem sei qual será O meu fim Para ter uma companheira Até promessas fiz Consegui um grande amor Mas eu não fui feliz E com raiva para os céus Os braços levantei Blasfemei Hoje todos são contra mim Todos erram neste mundo Não há exceção Quando voltam a realidade Conseguem perdão Porque é que eu Senhor Que errei pela vez primeira Passo tantos dissabores E luto contra a humanidade inteira . . . . . . . . . . . . . . .
samba com jeito de relato pessoal. o poeta está indignado porque não foi perdoado em função de sua blasfêmia, ou seja, culpou os céus e o "senhor" pela infelicidade amorosa. pessoas à sua volta criticam esta má ação, o que gera revolta, uma vez que todos são perdoados quando erram, menos ele. o poeta argumenta ao "senhor" que fez promessas, porque era de um grande amor que necessitava. reparem que o eu poético não se diz arrependido pelas blasfêmias, mas busca o perdão. o "sim" solitário do primeiro verso indica que deve haver esse perdão: é uma afirmação contudente, praticamente intimando os céus a livrá-lo da culpa. cartola: agenor de oliveira, nascido no rio de janeiro, 1908. falecido na mesma cidade, 1980. torcedor do fluminense e um dos fundadores da escola de samba estação primeira de mangueira. o apelido "cartola", veio dos tempos em que trabalhou como pedreiro e, para proteger-se, usava chapéu.
milly lacombe deu a letra a respeito do episódio da simulação tosca de penalidade protagonizada por neymar, neste julho 2022, em um jogo amistoso, contra uma equipe japonesa:
(...) Abel Ferreira recentemente disse que somos ruins em
formar homens. Não sabemos mesmo. Embora ele falasse
apenas a respeito da classe "jogador de futebol" a verdade
é que somos uma sociedade absolutamente fracassada na masculinidade tóxica. Incentivados a não amadurecerem. Incentivados a serem espertos.
Incentivados a não levarem desaforo pra casa. A ludibriar, ter vantagem, (...) Abel está certo. Falhamos nesse negócio de formar homens. (...) A boa notícia é que é possível desprogramar esse negócio de masculinidade
tóxica.
Muitos homens estão nessa aventura. Muitos estão na batalha para se
deseducar de padrões limitantes. Muitos estão lendo mulheres, escutando
mulheres, estudando mulheres, citando mulheres.
E muitos estão sendo bem sucedidos na tarefa. Para sorte de todos os
envolvidos.
Todo mundo tem o direito De viver cantando O meu único defeito É viver pensando Em que não realizei E é difícil realizar Se eu pudesse dar um jeito Mudaria o meu pensar O pensamento é uma folha desprendida Do galho de nossas vidas Que o vento leva e conduz É uma luz vacilante e cega É o silêncio do cipreste Escoltado pela cruz
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canção expõe nota de arrependimento e busca de acolhimento. a tal da empatia, como
se diz nesse nosso século.
o eu lírico mostra que seu defeito é pensar no que não fez... parece mesmo que existe culpa, nessa letra de cartola. então, a solução para o defeito seria mudar o pensamento – ao invés de tentar fazer alguma coisa. o pensamento, segundo o texto, é folha do cipreste que o vento leva, não tem peso. uma ação, pelo contrário,
fica, tem peso, pode ser julgada. uma outra leitura seria a chance deixar de crer que seja ele – o pensar – um defeito.
cartola: agenor de oliveira, nascido no rio de janeiro, 1908. falecido na mesma cidade, 1980. torcedor do fluminense. um dos fundadores da escola de samba estação primeira de mangueira. o apelido "cartola", veio dos tempos em que trabalhou como pedreiro e, para proteger-se, usava chapéu.
caborê é cervejaria oficial da cidade de paraty minha amiga tatjana vai a paraty, então, resolvi colocar uma lista de possibilidades aqui, de repente ajuda quatro igrejas, no centro histórico: matriz dos remédios, com praça na frente; igreja do rosário; das dores e a famosa santa rita
1. a rua do fogo é passagem quase obrigatória. ela termina -- ou começa -- numa das laterais da igreja de santa rita. 2. o bar casa coupê é imprescindível: do lado da igreja matriz, na praça, tem no croquete de costelinha sua maior obra. seguido de perto por qualquer outra coisa que contenha frutos do mar. peça a pimenta da casa, por favor. na calçada da frente, na árvore, um comedouro de aves. com sorte, você vê sanhaçus, ferro-velho, cambacicas e outros seres voadores 3. livraria das marés: tem espaço, livros ligados à história da cidade e um café, ao fundo 4. margarida café: melhor truta com purê de batata doce do universo. além do drink jorge amado 5. ver as maçãs do elefante, na praça da matriz 6.outro estabelecimento com "café" no nome: café pingado. traz bolinhos saborosos com canela e os impagáveis docinhos de cachaça. 7. boteco da matriz é visita esperada. na traseira da igreja dos remédios. lá tem porções variadas e cervejas artesanais 8. andar pela praia de jabaquara. tem um ponto de ônibus que é parada de leitura. livros doados para compartilhar. tem também sombra, areia, sons de pássaros, uma dezena de quiosques ofertando de tudo, até o drink "jorge amado" -- recomendo! 9. a luz do inverno sobre o mar: vá para frente da ponte sobre o rio perequê, pertinho da matriz e olhe 10. ouvir os bem-te-vis do centro histórico: fazem coro com os periquitos. é audição que abraça e conforta
O que é feito de você ó minha mocidade? Ó minha força, a minha vivacidade? O que é feito dos meus versos e do meu violão? Troquei-os sem sentir por um simples bastão
E hoje quando passo a gurizada pasma Horrorizada como quem vê um fantasma E um esqueleto humano assim vai Cambaleando quase cai, não cai Pés inchados, passos em falso O olhar embaçado Nenhum amigo ao meu lado Não há por mim compaixão A tudo vou assistindo A ingratidão resistindo Só sinto falta dos meus versos Da mocidade e do meu violão
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neste samba, o eu lírico vê que sua mocidade não mais existe. a vivacidade não é mais a mesma. ele demonstra a tristeza pela passagem do tempo. o que se lê, aqui, é o poeta ressentido. no momento da vida relatado no texto, está sem os amigos, sem os versos, sem o violão e "quase cai, não cai".
o "bastão" pode ser uma simples bengala, como pode ser o cigarro. o texto pode ser também uma alegoria aos novos tempos que chegavam à música brasileira, meados dos anos 1950: a bossa nova e uma "gurizada" que preferia lugares refinados: gente que não era do subúrbio, nem do morro, nesta época. a bossa nova deu outra roupagem ao samba. embranqueceu, por assim dizer, a música típica dos pretos, no rio de janeiro, naquele tempo.
Alvorada lá no morro, que beleza Ninguém chora, não há tristeza Ninguém sente dissabor O sol colorindo é tão lindo, é tão lindo E a natureza sorrindo, tingindo, tingindo Você também me lembra a alvorada Quando chega iluminando Meus caminhos tão sem vida E o que me resta é bem pouco Quase nada, de que ir assim Vagando numa estrada perdida Alvorada . . . . . . . . . . . . . . . . .
samba contrapõe a paisagem do morro à realidade triste do poeta, dentro de seus caminhos "tão sem vida". uma maneira de ter mundo melhor seria o momento da chegada da pessoa amada, comparada, claro, ao amanhecer no morro, lugar sem tristeza e muito lindo. olhem, todos sabemos -- até os que não moram no morro -- que a vida nesses locais é árdua. às vezes o saneamento básico é precário, falta transporte, pouco acesso a diversão imediata... agora, o texto de cartola aponta para uma visão romântica do morro: terra maravilhosa, feita de alegria, lembra aquele poema do gonçalves dias, "canção do exílio".
cartola: agenor de oliveira, nascido em cantagalo, rio de janeiro, 1908. falecido em 1980, na mesma cidade. o apelido "cartola" veio do tempo em que trabalhou como pedreiro e, para proteger-se, usava chapéu.
julho 2022 e como estamos? ansiedade diminui mas existe. exercícios físicos são um tiquinho mais regulares. em seis meses perdi dez quilos. isso mesmo: dez. dieta, nervosismos, sorte, terapia, essas coisas. julho 2022. pais estão em casa de acolhimento de idosos. difícil usar o termo "asilo". nosso preconceito estrutural em relação à velhice é mais sólido que as pirâmides. asilo não dá. por tradição, brasil sempre descartou nossa gente idosa. mas isso não interessa agora. eles estão lá, o lugar parece bom, jardim, enfermagem, refeições frescas, exercícios e tempo. aqui, tenho comprimidos: o antidepressivo e um outro lá pra pressão alta. tem fitoterápico pra acalmar alguma engrenagem que se solte. óleos essenciais também tem aqui. três, quatro pessoas me ouvem regularmente. uma é a analista. então, pais estão nessa casa desde 16 de junho de 2022. e estamos em julho. e daí, você vai perguntar. daí que é difícil. pode ser que queiram sair. pode ser que enjoem... que se sintam abandonados. arrepia pensar nisso, cérebro tem vida própria e de tempo em tempo ele me joga nos olhos um desses cenários. eles estão lá, sendo cuidados, é o que importa. pelo menos eles.