quarta-feira, 24 de agosto de 2022

papai noel às avessas - drummond

                                     

 [ ilustração de di cavalcanti para drummond, anos 1920 ]


drummond tem um poema despretensioso, desses que só funcionam quando a gente lê os outros do mesmo livro. enfm, chama-se "papai noel às avessas". nele, o leitor acompanha a entrada de um papai noel numa casa humilde e ele sai de lá carregando os brinquedos das crianças. 
o texto saiu no jornal, pela primeira vez em 1927. di cavalcanti gostou e fez desenho. pouco tempo depois, em 1930, o poema seria publicado em "alguma poesia".

"papai noel às avessas" ilustraria a vontade do poeta de expor mazelas sociais e situações do cotidiano de vidas urbanas. o homem que entrou na casa queria um tanto de alegria. queria os brinquedos. 
ame-se mais, dizem os animadores de neurônio alheio. goste-se. confie em si mesmo apenas... etc etc... 
esse papai noel larápio do texto realmente pensou mais em si. quis presentear-se. entrou pela casa e, mais do que algum relógio, roupas, dinheiro, ele levou brinquedos. 
seria uma criança tardia? um saltimbanco maligno? alguém deprimido querendo diversão? é o que acontece numa relação intensa: um fica com os prazeres do outro, não é assim? ficar com alegria de alguém é crime? papai noel às avessas não está aí pra ser símbolo do ladrãozinho. ele fez o óbvio. fez o que todo mundo crê que deveria fazer: pensar em si. mas... se quiserem chamar esse papai noel de simples ladrão, então tá.
não vejo graça nesse lance de simplesmente gostar-se mais e ponto, se o que a gente quer é o outro, se o que a gente quer é o gozo compartilhado.

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leia o poema todo:

Papai Noel entrou pela porta dos fundos
(no Brasil as chaminés não são praticáveis),
entrou cauteloso que nem marido depois da farra.
Tateando na escuridão torceu o comutador
e a eletricidade bateu nas coisas resignadas,
coisas que continuavam coisas no mistério do Natal.
Papai Noel explorou a cozinha com olhos espertos,
achou um queijo e comeu.

Depois tirou do bolso um cigarro que não quis acender.
Teve medo talvez de pegar fogo nas barbas postiças
(no Brasil os Papai-Noéis são todos de cara raspada)
e avançou pelo corredor branco de luar.
Aquele quarto é o das crianças
Papai entrou compenetrado.
Os meninos dormiam sonhando outros natais muito mais lindos
mas os sapatos deles estavam cheinhos de brinquedos
soldados mulheres elefantes navios
e um presidente de república de celulóide.
Papai Noel agachou-se e recolheu aquilo tudo
no interminável lenço vermelho de alcobaça.
Fez a trouxa e deu o nó, mas apertou tanto
que lá dentro mulheres elefantes soldados presidente brigavam
                                                                               [ por causa do aperto.

Os pequenos continuavam dormindo.
Longe um galo comunicou o nascimento de Cristo.
Papai Noel voltou de manso para a cozinha,
apagou a luz, saiu pela porta dos fundos.
Na horta, o luar de Natal abençoava os legumes.

C D Andrade - Alguma Poesia
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saiba mais:



quinta-feira, 18 de agosto de 2022

segue neste soneto a máxima de bem viver - gregório de matos

 


SEGUE NESTE SONETO A MÁXIMA DE BEM VIVER QUE É ENVOLVER-SE 
NA CONFUSÃO DOS NÉSCIOS PARA VIVER MELHOR A VIDA

 Carregado de mim ando no mundo,
 E o grande peso embarga-me as passadas,
 Que como ando por vias desusadas,
 Faço o peso crescer, e vou-me ao fundo.

 O remédio será seguir o imundo
 Caminho, onde dos mais vejo as pisadas,
 Que as bestas andam juntas mais ornadas
 Do que anda só o engenho mais profundo.

 Não é fácil viver entre os insanos,
 Erra, quem presumir, que sabe tudo,
 Se o atalho não soube dos seus danos.
 
 O prudente varão há de ser mudo,
 Que é melhor neste mundo o mar de enganos
 Ser louco co's demais, que só, sisudo.

             Gregório de Matos, século 17, Bahia

poeta está decidido a ir na contramão da lógica conservadora e unir-se aos chamados "néscios" -- como diz o título -- ou seja, juntar-se aos idiotas, ignorantes, loucos. 
ter andado por vias desusadas trouxe peso ao eu lírico. significa que o poeta pecou demais. remédio? resposta na segunda estrofe: seguir o caminho sujo mesmo. nele, neste caminho, há mais bestas e elas ficam bem ornadas juntas.
ao final, destaca: melhor a companhia da gentalha, dos loucos, do que ser um sério 
(sisudo), ajuizado solitário.
muitas vezes já me senti como nos primeiros versos de gregório. não que as "vias desusadas" fossem as do crime, as da maldade explícita, eram vias de mim mesmo. as vias da busca do que era o amar. meio tarde, aprendi que amor pleno era invenção da literatura, a vida não tem clichê.
nessa procura de um eixo entre amor possível e realidade tomei muito coice. apelidos, galhofa, ironias de todo tipo, por conta dessa ou daquela postura mais sensível. no acerto ou nas besteiras continuei debaixo de vaia. abandono,  hipocrisias e praticamente nenhum perdão. nesse quesito compreensão do amar tenho sido um fracasso. esse gregório aí tem toda razão.

sexta-feira, 12 de agosto de 2022

elza é filha de virgília e mãe de helena

 


elza é fräulein. a senhorita. 35 anos, cultura alemã.
o livro: "amar, verbo intransitivo" (mário de andrade).
elza é professora de piano e vai, nesta história, ter a função de ser a iniciadora amorosa do jovem carlos alberto, 15 anos. é o romance de mário é de 1927.

virgília é a não menos famosa amante de cubas, lá em machado de assis. e helena vem do século 20, no livro "três mulheres de três pppês", do paulo emílio, um dos melhores que já li. 
ambas carregam um protagonismo ímpar, dado o contexto de suas aparições: virgília em fins do século 19 e helena pela década de 1930. 
 
saber mais? veja o vídeo abaixo.



sábado, 6 de agosto de 2022

sim - cartola - comentário

 


           SIM
         Cartola [ 1908 - 80 ]

  Sim,
  Deve haver o perdão
  Para mim
  Senão nem sei qual será
  O meu fim
  Para ter uma companheira
  Até promessas fiz
  Consegui um grande amor
  Mas eu não fui feliz
  E com raiva para os céus
  Os braços levantei
  Blasfemei
  Hoje todos são contra mim
  Todos erram neste mundo
  Não há exceção
  Quando voltam a realidade
  Conseguem perdão
  Porque é que eu Senhor
  Que errei pela vez primeira
  Passo tantos dissabores
  E luto contra a humanidade inteira
    . . . . . . . . . . . . .  .  .

samba com jeito de relato pessoal. o poeta está indignado porque não foi perdoado em função de sua blasfêmia, ou seja, culpou os céus e o "senhor" pela infelicidade amorosa. pessoas à sua volta criticam esta má ação, o que gera revolta, uma vez que todos são perdoados quando erram, menos ele. o poeta argumenta ao "senhor" que fez promessas, porque era de um grande amor que necessitava. reparem que o eu poético não se diz arrependido pelas blasfêmias, mas busca o perdão. o "sim" solitário do primeiro verso indica que deve haver esse perdão: é uma afirmação contudente, praticamente intimando os céus a livrá-lo da culpa.
cartola: agenor de oliveira, nascido no rio de janeiro, 1908. falecido na mesma cidade, 1980. torcedor do fluminense e um dos fundadores da escola de samba estação primeira de mangueira. o apelido "cartola", veio dos tempos em que trabalhou como pedreiro e, para proteger-se, usava chapéu. 

sábado, 30 de julho de 2022

o destino e a má poesia

 

                                                                [ laerte ]

   na cultura ocidental, carneiro costuma ser símbolo de sacrifício
   só isso

quarta-feira, 27 de julho de 2022

masculinidade tóxica

 


milly lacombe deu a letra a respeito do episódio da simulação tosca de penalidade protagonizada por neymar, neste julho 2022, em um jogo amistoso, contra uma equipe japonesa:

(...) Abel Ferreira recentemente disse que somos ruins em formar homens. Não sabemos mesmo. Embora ele falasse apenas a respeito da classe "jogador de futebol" a verdade é que somos uma sociedade absolutamente fracassada na masculinidade tóxica. Incentivados a não amadurecerem. Incentivados a serem espertos. Incentivados a não levarem desaforo pra casa. A ludibriar, ter vantagem, (...) Abel está certo. Falhamos nesse negócio de formar homens. (...) A boa notícia é que é possível desprogramar esse negócio de masculinidade tóxica. Muitos homens estão nessa aventura. Muitos estão na batalha para se deseducar de padrões limitantes. Muitos estão lendo mulheres, escutando mulheres, estudando mulheres, citando mulheres. E muitos estão sendo bem sucedidos na tarefa. Para sorte de todos os envolvidos.

  [ Milly Lacombe, portal UOL - julho 2022 ]

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leia mais sobre o tema:

neymar envergonha o futebol brasileiro [ clica ]

neymar simula pênalti  [ clica ]



quarta-feira, 20 de julho de 2022

silêncio de um cipreste - cartola - comentário

 


     SILÊNCIO DE UM CIPRESTE
            Cartola [ 1908 - 80 ]

  Todo mundo tem o direito
  De viver cantando
  O meu único defeito
  É viver pensando
  Em que não realizei
  E é difícil realizar
  Se eu pudesse dar um jeito
  Mudaria o meu pensar
  O pensamento é uma folha desprendida
  Do galho de nossas vidas
  Que o vento leva e conduz
  É uma luz vacilante e cega
  É o silêncio do cipreste
  Escoltado pela cruz

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canção expõe nota de arrependimento e busca de acolhimento. a tal da empatia, como se diz nesse nosso século.
o eu lírico mostra que seu defeito é pensar no que não fez... parece mesmo que existe culpa, nessa letra de cartola. então, a solução para o defeito seria mudar o pensamento – ao invés de tentar fazer alguma coisa. o pensamento, segundo o texto, é folha do cipreste que o vento leva, não tem peso. uma ação, pelo contrário, fica, tem peso, pode ser julgada. uma outra leitura seria a chance deixar de crer que seja ele 
 o pensar  um defeito. 

cartola: agenor de oliveira, nascido no rio de janeiro, 1908. falecido na mesma cidade, 1980. torcedor do fluminense. um dos fundadores da escola de samba estação primeira de mangueira. o apelido "cartola", veio dos tempos em que trabalhou como pedreiro e, para proteger-se, usava chapéu. 

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saiba mais :



sexta-feira, 15 de julho de 2022

paraty é de pedra possível

 

                                       caborê é cervejaria oficial da cidade de paraty

minha amiga tatjana vai a paraty, então, resolvi colocar uma lista de possibilidades aqui, de repente ajuda
quatro igrejas, no centro histórico: matriz dos remédios, com praça na frente; igreja do rosário; das dores e a famosa santa rita

1. a rua do fogo é passagem quase obrigatória. ela termina -- ou começa -- numa das laterais da igreja de santa rita.
2. o bar casa coupê é imprescindível: do lado da igreja matriz, na praça, tem no croquete de costelinha sua maior obra. seguido de perto por qualquer outra coisa que contenha frutos do mar. peça a pimenta da casa, por favor. na calçada da frente, na árvore, um comedouro de aves. com sorte, você vê sanhaçus, ferro-velho, cambacicas e outros seres voadores
3. livraria das marés: tem espaço, livros ligados à história da cidade e um café, ao fundo
4. margarida café: melhor truta com purê de batata doce do universo. além do drink jorge amado
5. ver as maçãs do elefante, na praça da matriz
6.outro estabelecimento com "café" no nome: café pingado. traz bolinhos saborosos com canela e os impagáveis docinhos de cachaça.
7. boteco da matriz é visita esperada. na traseira da igreja dos remédios. lá tem porções variadas e cervejas artesanais
8. andar pela praia de jabaquara. tem um ponto de ônibus que é parada de leitura. livros doados para compartilhar. tem também sombra, areia, sons de pássaros, uma dezena de quiosques ofertando de tudo, até o drink "jorge amado" -- recomendo!
9. a luz do inverno sobre o mar: vá para frente da ponte sobre o rio perequê, pertinho da matriz e olhe
10. ouvir os bem-te-vis do centro histórico: fazem coro com os periquitos. é audição que abraça e conforta

divirta-se!

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                                                                       [ paraty ]

                                              [ drink jorge amado no margarida café]

                                                           [ maçã do elefante ]

                                           
  [ croquete de costelinha - bar coupe ]

                                                     [ boteco da matriz ]

                                        [ trindade -- boteco da matriz -- ]

                                                                      [ jabaquara ]


  [ rio perequê, mar e biguás ]

que é feito de você - cartola - comentário

 


   QUE É FEITO DE VOCÊ
         Cartola (1908-80)

 O que é feito de você ó minha mocidade?
 Ó minha força, a minha vivacidade?
 O que é feito dos meus versos e do meu violão?
 Troquei-os sem sentir por um simples bastão
 E hoje quando passo a gurizada pasma
 Horrorizada como quem vê um fantasma
 E um esqueleto humano assim vai
 Cambaleando quase cai, não cai
 Pés inchados, passos em falso
 O olhar embaçado
 Nenhum amigo ao meu lado
 Não há por mim compaixão
 A tudo vou assistindo
 A ingratidão resistindo
 Só sinto falta dos meus versos
 Da mocidade e do meu violão
 . . . . . . . .  .  .  .  .  .  .   .   .   .

neste samba, o eu lírico vê que sua mocidade não mais existe. a vivacidade não é mais a mesma. ele demonstra a tristeza pela passagem do tempo.  o que se lê, aqui, é o poeta ressentido. no momento da vida relatado no texto, está sem os amigos, sem os versos, sem o violão e "quase cai, não cai". 
o "bastão" pode ser uma simples bengala, como pode ser o cigarro. o texto pode ser também uma alegoria aos novos tempos que chegavam à música brasileira, meados dos anos 1950: a bossa nova e uma "gurizada" que preferia lugares refinados: gente que não era do subúrbio, nem do morro, nesta época. a bossa nova deu outra roupagem ao samba. embranqueceu, por assim dizer, a música típica dos pretos, no rio de janeiro, naquele tempo.

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sábado, 9 de julho de 2022

alvorada - cartola - comentário


            ALVORADA
      Cartola  [1908 - 80]

 Alvorada lá no morro, que beleza
 Ninguém chora, não há tristeza
 Ninguém sente dissabor
 O sol colorindo é tão lindo, é tão lindo
 E a natureza sorrindo, tingindo, tingindo
 Você também me lembra a alvorada
 Quando chega iluminando
 Meus caminhos tão sem vida
 E o que me resta é bem pouco
 Quase nada, de que ir assim
 Vagando numa estrada perdida
 Alvorada
  . . . . . . . . . .  .  .  .  
.  .   .   .

samba contrapõe a paisagem do morro à realidade triste do poeta, dentro de seus caminhos "tão sem vida". uma maneira de ter mundo melhor seria o momento da chegada da pessoa amada, comparada, claro, ao amanhecer no morro, lugar sem tristeza e muito lindo. olhem, todos sabemos -- até os que não moram no morro -- que a vida nesses locais é árdua. às vezes o saneamento básico é precário, falta transporte, pouco acesso a diversão imediata... agora, o texto de cartola aponta para uma visão romântica do morro: terra maravilhosa, feita de alegria, lembra aquele poema do gonçalves dias, "canção do exílio".

cartola: agenor de oliveira, nascido em cantagalo, rio de janeiro, 1908. falecido em 1980, na mesma cidade.  o apelido "cartola" veio do tempo em que trabalhou como pedreiro e, para proteger-se, usava chapéu. 



segunda-feira, 4 de julho de 2022

julho 2022

 


julho 2022 e como estamos?
ansiedade diminui mas existe. exercícios físicos são um tiquinho mais regulares. em seis meses perdi dez quilos. isso mesmo: dez. dieta, nervosismos, sorte, terapia, essas coisas.
julho 2022.
pais estão em casa de acolhimento de idosos. difícil usar o termo "asilo". nosso preconceito estrutural em relação à velhice é mais sólido que as pirâmides. asilo não dá. por tradição, brasil sempre descartou nossa gente idosa. mas isso não interessa agora. eles estão lá, o lugar parece bom, jardim, enfermagem, refeições frescas, exercícios e tempo.
aqui, tenho comprimidos: o antidepressivo e um outro lá pra pressão alta. tem fitoterápico pra acalmar alguma engrenagem que se solte. óleos essenciais também tem aqui.
três, quatro pessoas me ouvem regularmente. uma é a analista.
então, pais estão nessa casa desde 16 de junho de 2022. e estamos em julho. e daí, você vai perguntar. daí que é difícil. pode ser que queiram sair. pode ser que enjoem... que se sintam abandonados. arrepia pensar nisso, cérebro tem vida própria e de tempo em tempo ele me joga nos olhos um desses cenários. eles estão lá, sendo cuidados, é o que importa. pelo menos eles.


sábado, 2 de julho de 2022

carol e a conexão raiz

 


segunda-feira, 20 de junho 2022, carol carneiro estava aqui e resolvemos ir ao espaço da academia do condomínio, logo cedo.
no elevador, eu disse: vou te apresentar minha nova amiga.
e ela: quem é sua nova amiga?
eu: a pata de vaca.
costumo cumprimentar essa árvore sempre que posso. é só tocar nela e a conexão se faz. eu, a pata de vaca, o planeta e as entidades todas que atendem por "natureza". faz bem. lembra aquelas cenas do primeiro "avatar", do cinema.  só não uso os cabelos, mas uma das mãos mesmo.
bonito de verdade foi ver carol também fazer o gesto, assim que pus a mão no tronco da árvore. então, ficamos os conectados. pra sempre. ponto pra terra.